É a passagem que se continua

Uma crônica no jornal é como ter um encontro. Este pequeno hebdomadário deveria funcionar como a tréplica em um diálogo entre cronista e leitor, iniciado após atenta observação dos assuntos mais candentes, com intercalações de parte a parte. Não tem sido assim. Minhas motivações estão em camadas submersas. O tempo é uma máquina de moer. Não há nada que subsista ao decurso das horas. O que perdura é o vazio, a angústia, o silêncio, e disso nutre-se o texto que reparto. Não convêm as querelas que aparecem e desaparecem, mas a impermanência, a natureza fugidia em constante despedida de todas as coisas.

Escrevo sempre às quartas-feiras e fazemos nosso encontro – caríssimo provável leitor – às quintas. Isso gera um hiato e nunca chegamos a nos encontrar de fato, o que põe a perder qualquer intenção objetiva dessa concatenação de palavras em sequências de letras e espaços em branco. Não raro, ponho-me a duvidar da capacidade de entendimento entre duas pessoas. Quando dizemos uma palavra, é como se riscássemos um fósforo no porão escuro do leitor. E no brevíssimo instante da chama acesa, à luz untuosa e bruxuleante, o interlocutor olha para seu próprio cabedal de entendimentos preestabelecidos, retira uma definição e tenta extrair dela a sua significação. Esse processo é muito rápido na dinâmica da leitura de um texto. Não dá tempo de mastigar, deglutir, muito menos ruminar os sentidos. Pois há uma secessão de fósforos riscados e cada um deixando captar pontos distintos.

Hoje é quarta-feira, a manhã está fria e úmida. Estou acometido de sintomas. Uns cristais de febre me corroem a pele, desde as plantas dos pés. E me agasto em tentar dispor um mínimo de dignidade a esse nosso encontro – cara leitora – ao qual vou chegar com inevitável defasagem de um dia, entre o que sinto e escrevo e o que será lido. Até lá, esse clima de infinito outono pode ter mudado. Por isso, abro mão das coisas sérias e urgentes, para ser apenas a superfície hostil onde a cabeça de pólvora desliza para acender o seu fósforo. Os sinais estão em toda parte: hoje é aniversário de Cecília Meireles; na eclíptica, entra a lua nova de Escorpião; e os arrepios de febre sobem pelas pernas feito formigas de correição. Ah, a “vaidade triste” contamina as palavras com hoje, “ontens” e o amanhã.

COMPARTILHE: