É o amor, seu estúpido!

Ah, esse amor dos diabos, que faz tantos estragos nas pessoas! Esse amor que nos dá vida e, ao mesmo tempo, coloca-nos em um inferno abaixo do chão. Esse monstro, que queima e devora, e liquida. Essa paixão proibida: um inferno a crepitar em tantas cabeças, que devora os sensatos e os lança num abismo sem retorno.

Assim foram os últimos dias de Pablo, um boia-fria que lutou contra todos os obstáculos, mas muito inteligente e com os méritos próprios desafiou a lógica dos rios, tornando-se um físico premiado aqui e fora do país. Do nada, porque a vida de um boia-fria é menos do que nada, ao sucesso. Mesmo quando o estômago grudara às costas, Pablo não desistiu. Mas, enfim, sobe-se e se desce por muitas estradas.

Agora gozava de fama. Prestígio vale mais do que dinheiro na mão. Viagens, prêmios, um rol de seguidores. “Uns bestas”, dizia, “mas inofensivos.” Referia-se aos jovens que o veneravam por estas ou aquelas descobertas. Os corredores da universidade eram um caminho de lisonjas. Mas sua pobre alma era um visgo por aquele amor absurdo.

Certo dia, após ter estudado muito e descoberto algo novo, que lhe dera também muitos prêmios, um completo estudo de como se formam e se multiplicam as estrelas, saíra para um breve passeio noturno, a alma vazia, uma lassidão profunda, como sempre acontecia após ter realizado alguma coisa. Não encontrou nenhum amigo, ninguém para ouvi-lo. Descobrira algo importante, mas não tinha com quem partilhar a alegria. Por isso, entrou numa boate. Nessa noite conheceu a mulher de sua vida: morena, de bom porte, olhos verdes, cabelos negros sobre os ombros.

Pagou caro da primeira vez. Pagaria muito mais depois. Pagou bem mais da segunda e da terceira vez. Mas, como se diz, depois da terceira vez, já não é uma aventura. É um caso. O amor começa pelos olhos ou pelo sexo. Ou por ambos. Mas para Lorena começava pelo dinheiro. Dos treze aos trinta anos, a idade que tinha, o sexo tornou-se dinheiro. Ela sabia e conhecia, enfim, o vazio que existe em cada homem e aprendeu a usar os desencontros de cada um.

“Por você eu abandono tudo.”

Pablo acreditou. O amor é cego, roto e vagabundo. Mas é uma espada afiada. Aço fino. Ele remoía-se de ciúmes. Lorena vivia dando ao deus-dará.

“Monte um bar, amor. Eu largo tudo. Vou com você aonde quiser. Estou cansada desta vida. Ah, como sou infeliz!”

.  .  .

O bar de Lorena, tão bem escolhido por ela, tornou-se um ponto de encontro – claro, dos velhos amigos. Com ela, vieram os seus amantes. Em pouco tempo, o bar tornou-se movimentado.

Pablo – coração cada vez mais ardente – não via o lodaçal. Emprestou-lhe dinheiro para o estoque,  novos balcões,  a decoração. O local ficou um luxo.

Mas, um dia, por desacerto de horário, ele a pegou com a boca na botija. Mal entrou no bar (saíra cedo da universidade e o bar só abria à noite, depois das seis, e ele saíra bem antes do centro de pesquisa), divisou, num quartinho dos fundos, Lorena com outro, nus, em estado deprimente aos seus olhos.

O outro ainda riu – um risinho sádico, seco e tossido, como se fosse o riso torto do demônio:

“Pois, veja, estamos apenas… nos divertindo um pouquinho, não leve a sério.”

“Continuem”, disse Pablo. “Eu não vi nada.”

O que mais podia dizer? Suspenso, o cristal quebrado, os sentimentos arranhados. Um caminhão poderia passar por cima de seu esqueleto que nada sentiria. O episódio deixou-o abatido, mais baixo do que a sola dos sapatos. Onde estavam as juras de amor daquela ingrata?

Seguiram-se dias de abatimento e tortura. O espírito murchou; os dias tornaram-se inócuos. Para que viver? Ao homem é reservado tantas coisas…

Um inferno, a sua vida. Sentia ódio de si próprio. Jamais voltaria àquele lugar. “Que mulher ordinária.” Ordinaríssima.

.  .  .

O amigo Zerbinski, também professor, puxou-o pelo braço:

“Olha, eu tenho um assunto…”

Eram amigos há anos. Muitas pesquisas fizeram em parceria.

“Não me esconda nada.”

“Eu direi. Mas não aqui na universidade. É sigilo. E não fica bem.”

“Vamos sair, então.”

“Eu te aguardo no estacionamento após o horário.”

Para que tanto sigilo? Que diabos seriam? O tempo empacou, os ponteiros do relógio quebraram. Tudo virou uma lesma.

“Olha, Pablo, nem sei como começar…”

“Por que tantos mistérios?”

“É complicado.”

“Não há mal que sempre dure. Vamos, desembuche.”

“Bem, não é fácil. Também não quero passar por dedo-duro.”

“O quê? Dedo-duro? Mas de que está falando?”

A barbicha de Zerbinski subia e descia a sua frente.

“Um certo bar que você frequenta.”

“O que tem isso? Faço da vida o que me apetece. Você também gosta de bares, eu sei.”

“Aquele lugar é perigoso, Pablo. Sabe o que o pessoal está dizendo?”

“Não tenho a menor ideia.”

“Pois bem, aquilo é um ponto de encontro de drogas. Eu ouvi, fiquei quieto. Você é meu amigo. Estou passando como ouvi.”

“É mentira.”

“Um ninho de traficantes. Gente pesada, Pablo. A polícia, qualquer dia, desbanca o ponto. Cuidado, Pablo, você pode comprometer-se à toa. Há tantos lugares por aí… Você é famoso, é conhecido, não tem necessidade de correr risco assim. Onde há fumaça há fogo. Essa gente não tem escrúpulos.”

Os dias transcorreram embrulhados. Uma raiva terrível nebulava o seu raciocínio. No meio da escuridão, o amor falava mais alto. As palavras de Zerbinski também. Duas semanas rasparam-se. Seguindo os conselhos do amigo, não pisara aquele malfadado lugar.

“Mas que mulher ordinária!”

Ordinaríssima. Comera o seu dinheiro. Agora dava o rabo a estranhos. Dinheiro que ganhara suando, dias e noites a fio debruçado em questões enigmáticas, desconhecidas. Ela simplesmente comera o dinheiro. Mulher ordinária!

.  .  .

“É você, Pablo?” – a voz de Lorena ao telefone, sôfrega. “Por que não responde?”

Realmente, não tinha vontade de responder.

“Veja, Pablito, não leve tão a sério as coisas. Nada aconteceu. Pura encenação. Eu fiz aquilo para ver se você gostava ainda de mim. Você é a única pessoa a quem amo. Eu não sei viver sem você.”

Os minutos rasparam. A voz sôfrega, e agora cálida, de Lorena zunia-lhe em seus ouvidos. Uma força estranha mantinha o telefone grudado nos tímpanos.

“Você está ouvindo?”

Nada respondeu.

“Ouça, Pablito, eu não posso viver sem você. Minha vida é vazia. Eu preciso de você. Ah, Pablito, por que me faz sofrer? Você é o meu único e grande amor. Por que é tão ingrato? Por Deus, não me faça sofrer!”

Tomado por um impulso raivoso, desligou. Andou pela sala desnorteado, a voz de Lorena encalacrada em sua alma. “Que mulher ordinária!” Ordinaríssima, pensou. “Ainda tem coragem de falar tanta asneira…”

Em seguida, o telefone tocou. Não atendeu. Colocaria um fim naquele desvairado amor. Um ponto final, um nó cego, uma pedra, Zerbinski tinha razão. Aquela mulher era o diabo. Nas próximas semanas, viajaria ao Chile. A distância faria o resto. Sete palmos de terra bastam ao esquecimento, que dirão quilômetros? Uma viagem, naquele momento, vinha a propósito. O melhor remédio é a distância. Ah, o que os olhos não veem o coração não sente. Desconsolado, mergulhou em suas novas pesquisas. Não precisava daquela mulher. Vivera os anos sozinho, só com as pesquisas. Durante dias, sequer saiu de casa. A barba crescera, havia olheiras em seu rosto. Parecia um bicho. Mas desenvolveu ideias que há tempo vinha trabalhando. Perdera até a noção do tempo. Porém, o diabo não dá descanso. Não perde um minuto. De um jeito ou de outro, ele sempre trama. O telefone voltou a incomodá-lo.

“Amor, é você? Por que me trata assim? Eu te quero tanto!”

E disse tantas outras coisas, até que o coração de Pablo amoleceu. Com lágrimas, ele tremeu a voz, embargou-a, e explodiu o que há dias estava escondido.

“Ah, querida, eu também te quero tanto!”

Vieram, então, as mais gratas confissões entre velhos amantes.

Assim, à noite, dirigiu-se ao bar. Havia chovido e poças de água brilhavam. O trânsito engarrafara-se de tal modo que ninguém conseguia mexer-se. Um assalto num túnel da cidade, bem na boca da noite, acabara por colocar em pânico a multidão. Pablo queria chegar rápido, mas tudo empacara. Até o bar, ele caminhou um longo trecho. Mas, para tão belo e desejado encontro, pedras se transformam em flocos de algodão. Renovara-se por dentro e por fora. Tomara banho, barbeara-se, perfumara-se e cantara uma canção antiga que falava de separações abruptas e de encontros….

Pouco antes de Pablo chegar, Lorena e um de seus amantes, o Jamelão, conversavam.

“Mate esse cara, pelo amor de Deus!” — dizia nervosamente Lorena, mãos crispadas.

“Mas por quê? Ele é um pobre diabo. Um cordeirinho. Tão manso…”

“Ele descobrirá tudo. E contará a todos. Tudo ruirá sob nossos pés. Ele não é tão bobo assim.”

“Não acredito… Ele não tem peito. É um simplório. Nem sei como há gente que confia em suas pesquisas.”

“Não dormirei sossegada enquanto não matá-lo.”

“Besteira, Lorena. O amor é cego. Você, para ele, é uma deusa. Não vê a um palmo do nariz.”

“Eu lhe peço: mate esse cara! Ele abrirá a boca, se já não abriu. Será a nossa ruína.”

“Acho besteira.”

“Escute, ele vem hoje aqui. Eu o levo para dar um passeio numa estrada deserta e você nos segue. Então, paro o carro, finjo que enguiçou. Você chega, faz de conta que prestará ajuda… então, zás! Mate-o!”

“É desnecessário, Lorena. Esse sujeito é um inocentão. Não faz mal a ninguém. Um bobalhão.”

“Mate esse cara, eu sinto que poderá abrir o bico.”

.  .  .

Longos beijos e desculpas receberam Pablo. Um reencontro febril. Havia sede de amor e paixão em seus olhos. O corpo macio de Lorena dopava o seu raciocínio.

Muito movimento no bar naquela noite. O ar morno e esfumaçado pairava indigesto sobre as pessoas. Lorena disse-lhe: “Ah, amor, vamos dar um passeio. Estou cansada deste lugar. Ar puro, quero ver as estrelas.” Depois de um longo suspiro de aborrecimento, completou: “Esta noite é nossa. Só nossa. Sou tua, amor. Para sempre.”

Pablo ia pensando: “Que tolo sou. Fiz uma tormenta num copo d’água. Ela me ama. Sou eu quem ela deseja. Quanta tolice passa por uma cabeça!” Sorvia o ar cálido da noite. “Se tivesse acreditado nas palavras de Zerbinski…”

“Com o que está preocupado, amor? Por que tantas preocupações? Estamos juntos novamente. Ah, como gosto do ar livre. Sinceramente, amor, estou presa naquele bar. Me dê um beijo. Veja, sou tua, de mais ninguém. Você é a paixão da minha vida. A você devo tudo.”

O carro rodou macio no asfalto. A noite, de fato, estava bela. Lorena também. De seu corpo exalava um perfume que dopava a mente de Pablo. Longe ficara a cidade turbulenta. A estrada deserta. Só de vez em quando um carro passava, e rápido. Estrelas brilhavam e um ar branco cobria os campos. No rádio, um jazz triste, terrivelmente solitário, falando em encontros e desencontros.

Lorena, de repente, parou o carro. Em seu rosto uma expressão fria, quase desesperada, como se alguma coisa terrível  houvesse acontecido.

“Que droga! Um pneu furado” – disse, furiosa. “Que merda! Bem neste trecho de estrada…”

“Eu troco” – disse Pablo, paciente, empanzinado de felicidade.

Quando Pablo agachou para instalar o macaco, um carro estacionou logo atrás, cegando-o. Em seguida, divisou um homem a sua frente.

“O que foi, amigo? Posso ajudá-lo?”

“É só um pneu furado.”

Jamelão agachou-se também, um pouco atrás, como se fosse ajudá-lo de fato, encostou o revólver à nuca de Pablo e disparou várias vezes. O corpo estremeceu, pulou como mola tensa e rolou com o impacto, os miolos esmigalhados. Nenhuma palavra, nenhum xingo, sequer um “ah!” – tudo estava terminado.

“Este não incomodará mais, querida. O caminho é nosso. Porra, espirrou sangue até em minha camisa!”

Ambos os carros deslizaram macios e rápidos no asfalto. Perdido na noite, de borco, o sangue pingando contínuo, ficou Pablo, de boca aberta no chão áspero.

.  .  .

O professor Zerbinski soube pelos jornais. A manchete: “FÍSICO É EXECUTADO À QUEIMA-ROUPA”. Uma fotografia em cores em primeira página. Horrorizado, lembrou-se do dia em que, no estacionamento, alertara Pablo sobre o perigo.

Velou-se o corpo no salão nobre da universidade. Pablo não tinha família. Havia uma dor estampada em todos. Ele era muito estimado. Criara um rol de adeptos, que olhavam o corpo abismados. O enterro foi longo, triste e choroso.

Soprava um vento morno no cemitério. O suor corria em bicas. Zerbinski remoía-se em ódio e espanto. Mal o povo dispersou-se pelas ruas, ele rumou à polícia, relatando o que sabia.

“O senhor tem certeza?” – perguntou-lhe o major, seco.

“É o que sei. Não tenho provas. Mas não descansarei enquanto não provar. Pablo me contava muitas coisas. Éramos amigos.”

O major chamou o cabo.

“Cabo, há uma denúncia grave, quem sabe uma pista, sobre a morte daquele físico maluco. Venha até aqui. Anote tudo. Não pule uma vírgula. Entendeu?”

Em seguida, colocando a camisa por dentro das calças, apareceu Jamelão, de uniforme, solícito, cheio de atenção, com um punhado de folhas, sentando-se à escrivaninha para tomar notas do depoimento.

Semanas após, Zerbinski desapareceu. Nunca mais foi encontrado.

 [cap. Do romance “Paixão cega”]

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