Então era Natal (Nelci Seibel)

 

Então era Natal

Nelci Seibel

 

Desde que me conheço por gente, Natal é sinônimo de magia, de alegria e de luminosos sonhos, com a Missa do Galo e a vinda do Papai Noel. Na verdade nunca soube por que essa missa se chamava “do Galo”. Não sei o que o galo tem a ver com a missa. Enfim, a gente ia à missa, exatamente à meia-noite, assistir a uma penca de cerimônias; entre elas, o padre colocando o Menino Jesus na manjedoura – como aprendemos na catequese e na Bíblia. O presépio pelo menos alegrava, com aqueles personagens – Maria, São José, pastores e reis em tamanho real, estrategicamente colocados nos seus lugares, e no fundo uma enorme árvore de Natal. Era bonito. O ápice era o final, quando a multidão que enchia a igreja Matriz se punha de pé e cantava “Deus imenso Criador” (Groser Got wir loben Dich).

Hoje o presépio ocupa um espaço menor na igreja, parece que seguindo o tamanho das moradias hodiernas. Tudo isso acontecia e a gente morrendo de sono, afinal, isso transtornava a rotina diária. E claro, mais ainda das crianças. Voltava-se para casa de madrugada, e na manhã de domingo, haja levantar, que sacrifício! Ainda bem  que Papai Noel já havia chegado, no anoitecer anterior.

Para o “bom velhinho” entrar em casa, deixávamos a grande porta da frente aberta, para que ele tivesse facilidade de chegar com seu grande saco às costas. Enquanto isso, Papai Adolibio acendia as velas da árvore de Natal – sim, velinhas de cera mesmo, não havia energia elétrica – com o seu jurássico isqueiro, mas que nunca negava fogo.

O Papai Noel vinha pelo corredor falando grosso, perguntando se a gente se comportou durante o ano. Ora, pois, eu não concordava com isso. Preferia que ele logo entregasse os presentes. Como éramos uma “escadinha” de filhos, os menores choravam, de medo deste ser irreconhecível, com enorme barba, feita de “barba de pau”, que cresce nas árvores. Não havia barbas e máscaras brancas para serem compradas…

Ao colocar a mão no saco e retirar os presentes (assinalados pela mãe Guilhermina anteriormente), a turma se alegrava e já sentia um pouco de simpatia por aquele velho disfarçado. Nem sempre o presente era o sonhado, mas aí os pais enumeravam os argumentos, que, claro, na maioria das vezes eram as condições monetárias do bolso de quem abastecia o saco do Papai Noel. Mas pelo menos éramos reconhecidos…

Rezar, cantar Noite Feliz fazia parte do ritual, enquanto o “Saint Nicolaus”, como também era conhecido, ali permanecia. Aí, recolhia seu saco vazio, dizendo que havia escondido vários outros sacos do gênero, para visitar outras famílias e entregar presentes. Despedia-se, com várias recomendações que os pequenos nem ouviam, entretidos com seus carrinhos feitos de madeira (pelo Adolibio), as balas, chocolates e bolachas de Natal de diversos formatos – bonecos, passarinhos, estrelas, cachorros e por aí vai. Comparar, trocar uns com os outros, comer – ou pelo menos mordiscar, era a festa. “Eu comi o pé do meu cachorro” dizia um.

Como primogênita, não era de hoje que eu desconfiava de todo esse teatro. E me lembrei de que duas semanas antes do Natal fomos mais uma vez levados “a passear” na casa da vizinha, sem um motivo convincente, costume quando segredos estavam envolvidos. Nesse momento mamãe Guilhermina e tia Frida fabricavam as benditas bolachas. E eu pensando: deste Natal não passa. Vou descobrir o caroço que tem nesse angu. E ficar muito furiosa se não me desvendarem esse mistério.

Fogo na árvore

Nesse meio tempo Guilhermina chama para jantar, porque depois era se arrumar pra ir à missa. E começa  a correria, na sala absolutamente bagunçada com papéis, migalhas de bolachas, brinquedos, entre outros, e alguns já sentados à mesa do jantar. Dali a pouco um grito! Paaaaai! Tem fogo no pinheirinho! Mais correria. As velas que iam acabando de queimar começaram a prender fogo no pinheiro, que era daquelas espinhentas araucárias, grande até o teto. O João até quebrou uma cadeira quando subiu nela pra pendurar as bolas de Natal nos galhos.

Primeiro começamos a apagar as velinhas uma por uma, mas algumas já haviam se extravasado, dando fogo às espinhentas folhas nos galhos. E nada mais resolvia a não ser generosas canecas de água para apagar as inúmeras iniciativas de incêndio. E lá se foi o nosso belo presépio armado debaixo da árvore com tanto amor, carinho e tempo. Até o anjo anunciador da Boa Nova teve o cabelo chamuscado. Oh, noite longa aquela.

Anos depois, já na nova casa, quando mamãe Guilhermina nos deixou, com seus 92 anos bem vividos, Noeli e eu fizemos uma geral nas estantes, armários e gavetas, e encontramos uma caixa com algumas daquelas velinhas que sobraram daquele mini incêndio natalino e relembramos aquele evento.

Joli, o ladrão de bolachas

Bem, as bolachas. Outro sinal de mistério anunciado eram as enormes latas que Guilhermina guardava lacradas na dispensa, com a rigorosa recomendação de que Deus nos livre de que alguém mexesse.

Mas o sem-vergonha do cachorro nem esperou as bolachas serem guardadas nas latas. Não bastava ter me atacado dias antes quando estive na bomba d’água enchendo um balde, veio correndo a toda como se eu fosse a maior das suas inimigas. O infeliz me conhecia desde que ele era bebê, e quase me matou de susto, quando finalmente alguém conseguiu abrir o portão da varanda para que eu entrasse, desfalecida.

Na véspera de Natal, quando enfim eu sabia “de onde vêm os presentes e as ditas bolachas pintadas”, me achando adulta, eu já ajudava a prepará-las. A massa era recortada com forminhas representando figuras, assadas no grande forno, e à noite se fazia a cobertura com o glacê branco e açúcar colorido. Como esse processo demorava a secar, deixávamos as bolachas espalhadas sobre a mesa do jantar e cedo pela manhã eram recolhidas e guardadas nas famosas latas da Guilhermina.

Eis que, naquela noite, o Joli conseguiu entrar na sala de jantar, até hoje não sabemos como! Com seu faro fino de cachorro caseiro, descobriu as bolachas, pulou sobre numa cadeira, provou, gostou e fez a festa. Comeu até se fartar, mas de uma forma, digamos, sem noção. Acho que ele imaginava que uma era diferente da outra. Bonecos sem perna, passarinhos sem cabeça, estrelas sem algumas pontas, algumas bolachas lambidas por cima, muito farelo na mesa, nas cadeiras e no chão. Foi assim que Guilhermina, ao levantar cedo para enlatar aquelas obras de arte natalinas e guardá-las a muitas chaves, encontrou na sala de jantar o dito cujo Joli belamente dormindo de barriga cheia ao lado da mesa.

Pasma com aquela situação, chamou Adolíbio, que veio já com um chinelo na mão, para dar umas boas chineladas no Joli, que saiu com o rabo entre as pernas e a fuça ainda cheia de açúcar do glacê das bolachas. Não era bobo e sabia que extrapolou os seus direitos, e que tão cedo não deveria se aproximar do local do crime, sob o risco de levar uma nova lacrada de chinelo do Adolíbio.

No Natal do ano seguinte a ordem das coisas era quase a mesma. Porém,  sem velas e sim lâmpadas elétricas. Ah, e eu havia montado uma nova cabeleira para o anjo anunciador da Boa Nova. Não ficou igual, mas deu pra disfarçar.

 

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