Escolhos da noite anterior (Joel Gehlen)

 

Escolhos da noite anterior

Crônica Joel Gehlen, A Notícia 14 de dezembro 2017

 

Um abraço não foi feito para ser atravessado. Ímpeto e fúria se aplacam entre pares de braços e peitos que se estreitam sem mesura. E quando se desenlaçam, ainda há de sobrar tempo para o resto de dezembro, nessa procura por sobre os ombros, onde as mesmas propriedades se estimam sem contornos nem substância. Seus olhos carregam dezembro nas costas, transidos de calma e resignação, tão propícios à aproximação das tempestades do período. O mármore inacabado de um verso embarca na gare da eternidade.

Os zimbros dessa tarde elevam as sobrancelhas das estrelas e demarcam o rosto do tempo, esse pequeno vazio cheio de espanto domesticado. A noite cai feito um tecido tênue que se rompe ao afago do olhar, lentamente, tangendo uma adaga em cabo de osso. Dezembro é um reinado sem território definido, as fronteiras flutuantes à flor da memória. Delicado assombro que nos atrai, do seu topo é que se vê o universo. Esse convívio que desejamos tanto e não se consubstancia, exceto na melancolia. E dezembro passa sem causar danos, puro como os inocentes bíblicos. Desde o fim do corredor, três pequenos ramos de jasmim em flor recendem pela casa o seu perfume doce. Do outro lado da rua há um café com janelas muito baixas, onde a transversal do horizonte cruza com o anoitecer.

Esta crônica nasce antes – mas só será lida depois – da precipitação de meteoros que há de pintar em rajadas de prata o céu de dezembro. Pinceladas impressionistas, caídas da longínqua constelação de Gêmeos, trazem ao alcance dos olhos o Jardim das Hespérides. Terei visto as ninfas aqui do meu tugúrio, no cimo deste outeiro? Por via das dúvidas, alinhavo a epígrafe dos dias do meu ser campônio e copio com letras cansadas os versos de Caeiro, o heterônimo: “Na cidade, as grandes casas fecham a vista à chave, / Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, / Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, / E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.” A noite passada de dezembro projetou uma escada sobre a escuridão interior, mas só os incomodados ascendem “quando da Terra se pode ver no Universo”.

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