Fagulha, seu pateta! (Milton)
FAGULHA, SEU PATETA !
MILTON MACIEL
Recebi um e-mail de mim mesmo. Algo super comum hoje em dia. Mas não esse: esse vinha do FUTURO! Exatamente 12 anos, 9 meses e 3 dias no futuro: 9 de Julho de 2033. Claro, vocês vão achar que é só erro do clock do computador de onde veio. Ou que foi gozação de alguém. Pois não foi!
A começar pelo título: “Fagulha, seu pateta! “ Aqui nesta cidade grande, onde vivo há vinte anos, ninguém sabe desse meu apelido. Aliás, em minha cidadezinha natal, de onde saí aos 15 para vir para cá, também não houve quem soubesse.
Explico: só uma pessoa lá me chamou assim, na intimidade. E ela morreu poucos dias depois de me aplicar o apelido. Seu Madureira era um português de 60 anos, muito amigo nosso, dono de uma banca de revistas. Ele me estimulava a aprender inglês, quando eu tinha meus 9 anos.
Assim: em simples conversas ali na banca. Ele pegava revistas em inglês e me desafiava a traduzir a palavra que ele apontasse no momento, sempre em títulos grandes associados a ilustrações coloridas. Eu chutava, de acordo com a foto, e acabava aprendendo. E ele me dava revistas Time e Life, tomando o cuidado de arrancar as capas. Mandava essas capas para a distribuidora dizendo que as revistas correspondentes chegaram danificadas e recebia novas revistas em troca.
Quando errei cinco vezes uma palavra, spark, ele se irritou e deu a resposta: “É fagulha, seu pateta!”
E dali em diante passou a me chamar de Fagulha. Só ele fazia isso. E nunca o fez na presença de outra pessoa. Só que ele morreu menos de um mês depois de inventar o apelido, infarto fulminante. Fiquei sem meu primeiro professor de inglês. E sem meu mecenas doador de revistas. E também sem o apelido, para o resto da vida.
Por isso levei um choque quando li o título daquele e-mail: “Fagulha, seu pateta! “ O remetente era EU MESMO. O endereço de e-mail do remetente eu nunca tinha visto: fagulha@hvn.net. Quando li o texto, gelei:
“Fagulha, entes que você pense bobagem, não, não sou o Seu Madureira. Eu sou você, seu pateta. Pateta, mil vezes pateta! Viu a data do e-mail? Pois é isso mesmo. Eu estou escrevendo do FUTURO. Seu futuro, seu imbecil! Droga de futuro graças a você, por isso eu vou continuar chamando você de pateta, seu idiota. Sabe onde estou agora: no céu!
É, eu morri faz uma semana. Digo no céu para você entender, seu beócio. Só que de céu aqui não tem nada. Não fica nas nuvens, nem nas estrelas. É um lugar como outro qualquer aí da Terra.
Tá, tenho que admitir que é muito mais bonito. Aqui a gente tem paz, algo que eu nunca conheci antes. Tem muita gente, tudo gente comum como eu e você. Quer dizer, como eu e eu; ou você e você. Ah, sei lá, não importa. O pessoal aqui não encrenca, vive legal, não precisa trabalhar. Parece que depois de algum tempo eles arrumam um trampo pra gente, mas não logo que a gente chega aqui. Parece mais uma clínica de repouso.
O maior barato é que tem uns laguinhos, um monte deles, e eles funcionam como se fossem telões. E aí a gente aprende a focalizar a vontade e, depois de alguns dias (É, é meio difícil no começo!) a gente se reúne ao redor de um laguinho e pode ver as pessoas que deixou na Terra, dá até pra ver noticiários e ler jornal. É um barato.
Engraçado que, no dia que eu me dei conta que ia conseguir, era dia de Gre-Nal. Aí focalizei toda a minha concentração nisso e, de repente, eu estava vendo o jogo no Beira Rio.
Nós perdemos!
E vi que eu não estava sozinho na torcida, não: Quando o time deles fez o único gol da partida, pelo menos uns quinze caras se levantaram pra comemorar gritando e se abraçando. Um outro tanto amarrou a cara, alguns xingaram, como eu.
Bom, isso também não interessa. Estou mencionando só pra você saber, sua besta, que tem os laguinhos aqui. Pois é por causa do que eu vi num deles, no dia seguinte ao Gre-Nal, que eu estou escrevendo esta mensagem. Sabe, foi a primeira vez que eu consegui ver a minha esposa na Terra.
Conseguir essa sintonização é muito mais difícil, por causa do desgaste emocional, mas a gente sempre chega lá. Eu sempre fui apaixonado, louco por essa mulher. Desde que começamos a namorar, eu nunca mais quis saber de outra. Fui fiel sempre. Ela era uma esposa perfeita: linda, carinhosa, um vulcão na cama, trabalhadeira, solidária. A gente não teve filhos, estávamos casados há 11 anos e meio quando eu adoeci.
Foi uma doença esquisita, que minou rapidamente minhas energias. Ela tinha um médico de família, muito competente, homem de seus quarenta anos, que foi quem cuidou de mim. Menos de um mês depois da primeira crise braba, eu tive que ser internado às pressas. O Dr. Maurício não arredava pé, era de uma dedicação espantosa. Quando eu fui para a UTI, aí mesmo que ele estava por lá sempre que podia. Mas não adiantou.
Lembro da minha adorada triste pelos cantos antes e, depois, chorando aos gritos, inconsolável, ao receber a notícia do meu falecimento. Não adiantava o doutor ampará-la, os parentes e amigos recearam que ela fosse se matar, tal o desespero que tomou conta dela.
Ficaram vários dias vigiando-a, o mesmo médico teve que tratar dela em casa.
Você nem pode imaginar o meu sofrimento, que era duplo: eu ia ficar sem meu grande amor para sempre e ela ia sofrer brutalmente por causa da minha perda. Fiquei revoltadíssimo. Xinguei Deus de tudo que é palavrão. Mas, é claro, não adiantou. Horas depois já estava eu aqui neste lugar, com um monte de gente tratando de me consolar e aliviar. Aliviar, aliviaram. Consolar, não!
Mas como eu estava contando, chegou o dia em que eu já tinha treinamento suficiente para rever minha adorada. A água do laguinho foi assumindo, para a minha visão, a forma de um vapor e, segundos depois, eu estava tendo uma visão mais que celestial, muito melhor do que a que eu esperava ver.
Ela estava deitada em nossa cama e COMPLETAMENTE NUA! Fiquei em êxtase, contemplando toda aquela beleza. Cheguei a ir às lágrimas, tal a emoção.
Só que no segundo seguinte, tudo mudou. Do nosso banheiro saiu um cara peludo. Peludo e pelado, também. Fiquei em estado de choque, quis parar de ver na mesma hora, só que parece que o processo é meio irreversível. Felizmente, eles não fizeram nada, já tinham feito, pelo jeito tranquilo dos dois. Mas o que eles falaram foi que me deixou ensandecido:
– Tudo seguro, amor? Você tem certeza que não ficou nenhum vestígio mesmo? Posso dormir sossegada?
– Claro que tenho, querida. Afinal eu sou médico ou não sou? Você deu o veneno pra ele em casa, mas o grosso do trabalho fui eu que fiz no hospital, dando as injeções que fizeram ele piorar. E depois, na UTI, quando eu desliguei um dos aparelhos o tempo suficiente para ele apagar, estava garantida a nossa vitória. Já tinha dado tempo suficiente para ele eliminar a maior parte do veneno da última injeção. Se eu não desligo a máquina por uns minutos, ele começava a reagir e ia acabar ficando bom.
– Então não tem perigo mesmo, nenhum outro médico vai ficar desconfiado?
– Claro que não, meu anjo. Ou você já esqueceu quem fez a autópsia? Pois não foi o Oliveira, comigo junto, porque era grande amigo da família?
– É, foi. Então você acha que eu já posso entrar com os papéis na seguradora.
– Lógico, amor. Em coisa de trinta dias você vai ser uma viúva rica. E alegre!
– É, alegre, sim. Não só pelo dinheiro, que é bom é claro, mais de um milhão. Mas por ter me livrado daquele mala e poder ficar com você pra sempre, meu tesouro. E aí você pode vir pra cá, escondidinho como agora por uns tempos, depois a gente casa e pronto. Vamos poder economizar uma grana em motel. Imagine só o quanto nós gastamos nisso nestes quatro anos, não é, meu tesão?
– Amooor! – E um tranquilo beijo selou aquele diálogo diabólico entre minha, até então, adorada mulher e o meu, até então, dedicado Dr. Maurício.
Pois é, seu paspalho, fui assim que eu morri. Fui assassinado pela minha doce esposa e por meu médico, que se comiam há quatro anos. Enlouqueci por uns dias. Quis morrer! Mas não deu, eu já estava morto! Pelo menos tecnicamente, estava. Mas aí morri de novo, emocionalmente.
Bom, mas não é isso que me leva a quebrar a regras daqui e conseguir um canal de interação com o passado aí na Terra. O que eu quero te avisar, seu imbecil, é que essa mulher linda e adorável é exatamente essa por quem você está apaixonado agora. E que você vai cair direitinho na armadilha dela e da família dela. Eles vão fazer a coisa de um tal jeito que você vai querer casar logo com ela.
Não caia nessa, Fagulha, seu paspalho! Essa filha da puta vai me matar e vai te matar, dentro de poucos anos. Estou avisando. Cai fora, muda de cidade, faz qualquer coisa pra se livrar desse monstro. VOCÊ TEM QUE NOS SALVAR!”
E era isso o que estava na mensagem…
Pois é! Que coisa, que dilema. Só que hoje eu estive com a Isildinha, nos beijamos, trocamos carícias, juras de amor. Como é que eu vou acreditar que uma menina tão amorosa, tão frágil, tão sensível, seja capaz de uma torpeza dessas. Não dá.
Aí pedi logo a mão dela em casamento. Vai ser daqui a três meses. Dane-se o e-mail, vou tratar de esquecer essa xaropada! Pelo menos, o cara do lado de lá está certo numa coisa: eu sou mesmo um homem completamente APAIXONADO!