Gostaria de falar com quem?
Para dar o primeiro passo é preciso desequilibrar-se. E isso causa desconforto.
Quando o telefone tocou, Serena desligou a torneira e enxugou as mãos para atender. Era uma manhã cheia de compromissos. O primeiro, deixar a casa minimamente organizada; depois, ir ao banco, ao mercado, fazer almoço, esperar uma entrega e ir ao médico.
– Alô!
A voz do outro lado era de sono ou descaso, ainda que dissesse “bom dia”.
– Bom dia.
– Quem fala? – a voz era de descaso.
– Gostaria de falar com quem? – respondeu Serena já identificando o engano.
– Com a Romilda.
Enquanto tentava ser educada dizendo que não havia uma Romilda ali, irritava-se ao pensar nos minutos que perdeu para atender. E isso foi só o começo de tudo que aconteceria naquele dia em que a fila do banco ficou imensa, as frutas no mercado apodreciam ao seu toque, o arroz queimou, a entrega não veio e o médico foi direto ao assunto.
A noite chegou. Deitou-se e, distante, fez seu papel de esposa. Em silêncio escondeu choro e diagnóstico. Queria ser Romilda naquele dia, e atender a amiga que tinha voz de desprezo, mas que lhe entendia muito bem, porque era uma amizade dos tempos de escola, daquelas cheias de imperfeições e, por isso, cheia de concessões e interminável.
Mas ela era ela.
Levantou para mais um dia. Orou. Buscou equilíbrio. Creu.
Despejou detergente, colocou a mão sob a água fria, esfregou.
Quando o telefone tocou, Serena desligou a torneira e enxugou as mãos para atender.
– Alô! Quem fala?
– Gostaria de falar com quem?
– Com a Romilda.
– É ela.
(Publicado no dia 16/8/19, no jornal A Notícia)