Jogos olímpicos

Qualquer Olimpíada, cuja abertura seja notável pela beleza, técnica e, sobretudo, filosofia em favor da paz, me traz deliciosas lembranças daquelas três de que participei. A primeira, no Catarinense, quando ganhei um canivete de duas lâminas inox; a segunda, no Saco dos Limões, quando ganhei uma medalha de prata, cujo azinhavre, até hoje, não deixou de sair; a terceira, universitária, do Quarto Centenário de São Paulo, quando ganhei uma dependência em direito comercial, com o saudoso professor Henrique Rupp Jr.

No Colégio Catarinense, todos os anos, por ocasião do aniversário do Santo Ignácio de Loyola, realizava-se uma. Havia, na nossa classe, um gaúcho, o Azambuja, que corria como um veado. Depois se verificou que a comparação era ao pé da letra e ele foi convidado a deixar o estabelecimento, para evitar a corrupção sexual da mocidade estudiosa.

Com ele, o De Luca, o Joaquim Bode, organizei uma equipe para disputar a prova de quatro por cem. Os três eram excelentes corredores, mas foram no meu pio.

Eu fiquei em segundo para passar o bastão. O Bode saiu, eu peguei, o De Luca adiantou e o Azambuja chegou em primeiro.

Nosso prêmio – o que importava era competir! – foi um canivete de duas lâminas de aço inox, lembrança do Congresso Eucarístico de Porto Alegre.

Tendo uma namorada que dançava no Limoense, inscrevi-me para uma olimpíada a se realizar no campo desse clube, durante a qual – sem dúvidas – poderia exibir-me para ela, conquistando-lhe certos favores somente concedidos aos campeões.

Não os conquistei, mas sim, uma medalha de prata, cujo azinhavre tisnou para sempre uma blusa gola rolê da Hering – o fino da bossa, então – para todo o sempre.

Aí, sendo o Paulinho Pirajá (Dr. Paulo Gonzaga Martins da Silva, ex-secretário do Tribunal de Justiça), presidente do Centro Acadêmico XI de Fevereiro, da Faculdade de Direito da rua Esteves Junior, de alcunha Alfaiataria do Didico, o próprio me perguntou se não queria ir a São Paulo.

– Fazer o quê?

– Participar da Olimpíada Universitária do Quarto Centenário da cidade.

– E as despesas?

– Tudo pago, viagem pelo Carl Hoepcke até Santos, alojamento em São Paulo.

Modestamente, pensei, é a minha fama de atleta que ultrapassa as fronteiras da ilha. Afinal eu andava, remava, boxeava (derrotei o Bainha do internato, que era o Tyson da época), jogava futebol, basquete, tênis de mesa, vôlei, fazia barra, cavalo-de-pau e halteres, enfim tudo que não me deixasse tempo para o estudo.

– Feito, vou. Mas no que vou concorrer?

– Por que não tentas no pentatlo?

– Taí o que faz meu gênero.

Quatro dias depois, descia, em frente ao Pacaembu, de uma Kombi, pronto para conquistar mais algumas medalhas.

Apresentei-me à comissão e fiz minha inscrição para o pentatlo, cinco provas: dardo, disco, quatro por cem, peso e salto com vara.

No dia seguinte, uniformizado a capricho, até sapato com pregos se exige, cheguei cedo ao estádio para um aquecimento. Dei uma volta na pista, a trote, que no galope não ia aguentar, e cheguei com a língua um pouco de fora.

Pretextei a temperatura, outro clima. Acostumaria.

Logo ouvi a chamada para o desfile, e após ele – cansativo paca – fomos ao vestiário discutir algumas táticas a serem aplicadas. Foi lá, quando mudava de roupa, que descobrimos porque o Massolini era apelidado de tripé. Um aleijão, Deus meu!

Advertidos e orientados pelo nosso técnico, partimos para a vitória. Fui chamado à prova de dardo.

 

Peguei aquela lança e fiquei brincando com ela pra me familiarizar com o peso, a textura, a flexibilidade – esclareci aos circunstantes, o que despertou, entre os rivais, enorme admiração pelos meus conhecimentos técnicos.

Brincando, atirei-a.

Não foi muito longe, claro. Mas, até hoje, ninguém explicou porque se partiu em dois, quase ferindo um competidor de outra prova, ali perto.

Desdenhei da qualidade e pedi um dardo bom, de preferência inglês, buscando dar a entender que eu sabia das coisas. Vieram vários e eu examinei um a um. Escolhi, sopesei-o e disse:

– Com este não vejo ninguém a minha frente!

Teve início a disputa. Chamado, preparei-me, formei uma corridinha de banda e lancei o dardo, apenas temendo que pudesse ultrapassar os muros do estádio.

Como a natureza estava contra mim, certamente, o vento o impediu de pegar voo e, sem se cravar no solo pátrio, o derrubou a pouco mais de dois metros de onde eu estava. Duas outras tentativas não obtiveram melhor distância.

Fui desclassificado, mas sob protesto. Aquilo teria sido alguma sabotagem. Não me dei por achado e fui-me às demais quatro provas.

Achei o peso, uma bolona de ferro, pesadão e capaz de me provocar uma distensão muscular. Por isso, fiz pouca força, joguei a bolotona a dois passos e também fui desclassificado.

Restavam as três outras.

Não fui mais feliz. Anos mais tarde, refletindo sobre os acontecimentos desportivos de minha vida, cheguei à conclusão de que o Grande Arquiteto me reservara para as coisas do espírito, da cultura intelectual, mas nunca para aquelas cansativas práticas espartanas.

Por fim, foi na prova de salto com vara que a coisa teve lances curiosos. Cheguei e perguntei a um colega:

– É aqui que se pula com vara?

– Não, se salta.

A correção, imediatamente, lhe acentuou a antipatia nata de todo árbitro. Um prepotente, estava se vendo, que – na dura – ia fazer tudo para prejudicar o meu desempenho.

– O que tem pra ser saltado?

Apontou para uma vareta, que se equilibrava na ponta de dois preguinhos, pronta a cair ao menor sopro de vento. Encostei-me numa das traves que a suportava e medi, pela minha, a altura: dois metros e dez, no mínimo.

– Começa dali?

– Sim, dali pra cima.

O cara estava contra mim e fui direto ao assunto:

– O que é que tu tens contra mim? Venho aqui numa boa pra dar uma força, competindo, e tu já ficas causando embaraços. Não dá pra baixar um pouco, não? Um pouquinho, assim (fiz a distância com os dedos polegar e indicador), pra começar, parceiro.

– É dali mesmo que começa.

– Pombas, de dois e dez? Tás pirado, ó meu!

Nisto, veio um concorrente e firmou a ponta de aço da vara num chanfrado no chão, correu a mão por ela e, vupt, passou raspando.

– Tá vendo, tá vendo, quase que o cara se dana. Caísse de mau jeito, ia se ralar. Podia, até, quebrar a espinha, ficar aleijado. Que graça? Dá uma baixadinha pra mim, tá?

Orgulhoso, nem me ouviu. Paulista, de certo. Quatrocentão!

Apanhei uma vara, que, até então, apenas conhecia à distância, e pus-me a examiná-la.

– Onde é que é feita?

– No Japão, explicou alguém. Tem de ser resistente e flexível. Bambu especial.

Tomei-a nas mãos para uma análise detalhada.

– Pesadinha, hein? Parece bambu-açu, tentei demonstrar, outra vez, os meus conhecimentos de botânica tropical. Algo mais pesada.

– Não, açu não, de outra qualidade. Dá no Japão…

–…E na Tailândia – afirmei. E como é que se faz para manejá-la?

Ele veio, com uma injustificada cara de zombaria, e perguntou:

– O colega vai competir nessa modalidade?

– Depende.

– Depende do quê?

– De me adaptar à vara. Não pulo, digo, não salto, com qualquer uma, não.

Então, ele, a querer ensinar-me (invejoso do meu provável sucesso), manejou a vara, dando-me a entender como se fazia, quando se tinha prática e habilidade.

Em seguida, correu, espetou-a num triangulozinho de madeira, ela empinou; ele, rapidamente, foi trocando de mãos, chegou lá no alto, ultrapassou a vareta com folga, largou a vara pra trás e caiu como um paraquedista, em pezinho, sem revelar o menor esforço.

– Viu como é?

– Tem de correr a mão pra cima? Pra quê?

Veio uma explicação técnico-científica, que menosprezei com uma observação:

– Vai ser a primeira vez que trepo numa vara.

Tomei-a e, arrastando, fui novamente com o antipático árbitro para ver se lhe conquistara as graças, no que não obtive o menor êxito. Ou era incorruptível, ou estava contra mim: queria a minha desgraça. A minha vergonha!

Restava um caminho: tentar o salto.

Ainda assediei uma vez mais:

– Se eu passar, a vareta vai subir ou vai descer?

Pergunta tola. Ia subir ainda mais. Estava tudo contra mim. Nunca participara daquela modalidade de prova. E a única vara que eu já manejava não era daquelas.

Benzi-me, encomendando-me aos meus anjos e santos, pensei que seria tudo pelo amor à faculdade e parti.

Na primeira vez, por ligeiro erro de cálculo, não acertei o triângulo, e a ponta da vara foi espetar-se na areia, impedindo-me de alcançar voo e transpor aquele obstáculo.

Pressenti que a minha responsabilidade aumentara, porque dezenas de atletas se aproximaram para assistir-me. Acho que era inusitado o meu salto.

Tomei novamente a vara, e formei a corrida, mirei o vértice do triângulo, onde ela deveria firmar-se para permitir o giro pelo espaço até alcançar o vazio acima da vareta, de onde despencaria de queda livre, com meus 107 quilos, pra me afundar na areia da cancha.

Bem que eu insistira com o árbitro pra deixar a vareta mais baixa. Tentei, até, um pequeno suborno: “se baixares, te dou um canivete de estimação, que ganhei no tempo de Catarinense”. Nada! Um Robespierre de olimpíada!

Ganhei impulso com a corrida, firmei a vara no vértice do triângulo, corri as mãos para a ponta da vara, como tinha visto outros, antes de mim, fazerem; senti a vara vergar-se, ouvi uns sons da torcida (Boa! Boa! Vai! Vai! Agora!).

Depois, um longo e ensurdecedor silêncio: eu nem conseguira sair do chão.

 

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