Khirbet Qumran – Nathan, o Zelote
Do alto da escarpa, à entrada da caverna, a velha contemplava a paisagem de Khirbet Qumran. A noite caia rápida e a visão da praia e da grande extensão de água à sua frente ia se fazendo mais e mais enevoada, aumentando a falta de nitidez com que as cataratas crescentes em seus olhos a castigavam.
Mas nem toda a névoa deste mundo seria capaz de esconder dela o vulto odioso, inconfundível, que se aproximava do penhasco. Puxando um jumento, Shlomo, o publicano, caminhava lentamente pela praia, com seu passo oscilante de bêbado. Uma vertigem tomou conta da velha: quarenta anos de humilhação e maus tratos nas mãos daquele maldito marido assomaram à sua lembrança, enchendo de tristeza e revolta sua mente, até então envolta pela enorme paz do ambiente.
Ali, judiciosamente, a velha adepta se dedicava a colocar os manuscritos dentro dos grandes vasos de argila, quase do seu próprio tamanho. E fechá-los com as grandes tampas, que cimentava com perfeição.
Os romanos avançavam cada vez mais e os líderes da comunidade essênia, receosos da destruição de seu grande legado, haviam decidido escondê-lo nas grandes cavernas de Qumran, à beira do mar Morto.
Lágrimas assomavam aos olhos baços da pobre mulher, quando algo lá embaixo despertou sua atenção. Da escuridão já quase plena, assomou um vulto por trás de Shlomo e o atacou com um enorme remo de barco. Um único golpe certeiro no alto do crânio, um ruído de pote quebrando, e o velho tombou pesadamente sobre os joelhos. O agressor agiu célere: arrastou o corpo para junto de um grupo de barcos distribuídos na areia entre as rochas e a água e o escondeu rapidamente, cobrindo-o com um grande monte de redes de pesca.
A velha passou da surpresa e do susto para uma sensação de alívio e euforia. Ninguém precisaria lhe contar, havia presenciado tudo: o pesadelo chegara ao fim! Décadas de martírio estavam agora encerradas pelas mãos de um Anjo Vingador. Sempre tivera essa convicção: um dia o Senhor haveria de enviar um anjo para punir todas as incontáveis maldades de Shlomo. Por que tardara tanto?
A essênia então deixou-se cair de joelhos, suas lágrimas rolando abundantes agora, enquanto murmurava um rosário de preces e frases ininteligíveis, deixando sair do fundo do peito toda a emoção de que estava tomada.
Toda ela parecia estremecer em convulsões, mas seus olhos, quando se abriam, revelavam toda a enorme, toda a indizível alegria de que se via inundada. Nessa situação ficou por longos minutos, até que sua atenção foi de novo chamada por movimentos de pessoas lá embaixo.
Viu que um pequeno grupo de pescadores se encaminhava para os barcos. E notou que um deles ia direto para o tufo de redes empilhadas, formando um monte estranho à prática comum daqueles homens, o que lhes havia chamado a atenção ao chegarem.
Ergueu-se a mulher, alarmada. A violenta emoção de euforia deu lugar a um momento de preocupação. Logo os pescadores descobririam o corpo de Shlomo. E, pouco depois, perceberiam que um dos seus barcos havia desaparecido. Nele, o Anjo Vingador se evadira rapidamente da cena do crime, deixando nítidas pegadas na areia úmida.
A velha sentia-se tão imensamente grata a seu redentor que a última coisa que queria é que os homens saíssem à sua caça em seus pequenos veleiros. Acalmou-se um pouco ao lembrar que agora já era quase noite fechada e que, talvez, os homens custassem a perceber o furto do barco. Mas o que havia por baixo do estranho monte de redes estava para ser descoberto no instante seguinte: o homem já havia começado a remover as redes de cima e chamava, excitado e aos gritos, os seus companheiros.
Aquele a quem a velha chamara seu Anjo Vingador era Nathan da Galileia. Um zelote dos mais ativos e dos mais procurados por romanos e judeus, com cabeça a prêmio. Solitário por vocação, Nathan quase sempre agia sozinho. Por isso suas emboscadas e ataques não eram espetaculares. Ao contrário, resumiam-se a cuidadosos e bem planejados reides contra um único indivíduo.
Passara, desta vez, quase uma semana à caça do velho publicano Shlomo, um cruel explorador do seu próprio povo, de quem arrancava escorchantes tributos em nome de Roma. Tributos que, depois, sonegava em boa parte aos romanos.
Shlomo fora a causa da desgraça de muitos homens e de suas famílias, nesse rol incluído o pai de Nathan. O velho Shaul, expropriado da maior parte dos seus bens, não havia resistido à tristeza e à humilhação. Embora a família contasse que ele caíra do penhasco, seus filhos perceberam que ele havia saltado para o fim, em desespero. Agora Nathan fizera-lhe justiça.
Sem saber do drama da velha mulher do abutre publicano, via a si mesmo como um Anjo Vingador. Mas não apenas de seu pai, senão que de todo um povo massacrado e vilipendiado pelos invasores romanos e seu asseclas judeus, estes ainda mais odiosos por se locupletarem com as escassas sobras arrancadas a pulso de seus compatriotas. Justiçado Shlomo, escondera-lhe o corpo sob redes de pesca e fugira tomando um dos barcos a vela que estavam ali fundeados.
Agora seu olhar perscrutava o grande lago de Asfaltitus, ao qual os romanos preferiam chamar de Mar Morto. Navegava na noite fechada, sem lua, na escuridão quase completa. Mas seus olhos habituados às longas espreitas nas noites de emboscada, seu passado de menino marinheiro e pescador no Lago de Genesaré, à beira do qual nascera em Cafarnaum, lhe permitiam navegar com segurança mesmo nessas condições.
Os mistérios do Asfaltitus, suas correntes, sua água espessa de sal, não lhe eram estranhos. Por ali já se deslocara em outras missões. Agora, deixando Khirbet Qumran, velejaria toda a noite e pelos dias seguintes, até alcançar o extremo sul do Mar, saindo dele na altura de Masada.
Dali se esgueiraria mais uma vez pelas montanhas, chegando a Hebron e de lá, devidamente disfarçado, haveria de achar caminho para Jerusalém, onde esperava encetar um novo ataque, agora dirigido a um funcionário romano, um sibarita balofo e preguiçoso, que enriquecia como cúmplice de muitos dos achaques de Shlomo, acobertando-lhe os múltiplos desvios.
Na noite densa, de poucas estrelas escurecidas pela névoa, Nathan olhava seu Lago Asfaltitus com amor e gratidão. Outros talvez nada pudessem ver, mas, para o galileu, ele era totalmente perceptível: via suas águas serenas e escuras, os bancos de areia e os rochedos às margens, as raras fogueiras acesas, uma ou outra escassa casa ou grupo de casas iluminadas pelas lamparinas, nos quase inexistentes vilarejos situados sobre as escarpas.
Mar Morto? Não. Mar cheio de esperança de vida, enquanto por ali passassem, tudo arriscando, guerrilheiros patrióticos e corajosos como ele, Nathan, o galileu – Nathan Zelote.
Unira-se aos guerrilheiros zelotes quando ainda um menino imberbe. Crescera participando de emboscadas a patrulhas romanas e de ataques a seus paióis de mantimentos e seus arsenais de armas.
Seu coração não tivera como conhecer o medo, só a revolta. Revolta que só fizera crescer, depois da morte de Shaul. Desde então desligara-se do grupo e passara a agir exclusivamente só, do seu próprio jeito. E devotara-se, de corpo e alma, a justiçar publicanos e seus asseclas romanos.
Como fizera com tantos deles, como o bêbado Shlomo há poucas horas. E como faria com o sibarita Flavius Marcelus dentro de mais alguns dias.
Era um guerreiro, era um legítimo descendente de Judas Macabeu, o filho de Matatias. Como Judas perecera combatendo os selêucidas no passado, Nathan estava pronto para morrer em combate; morrer lutando para libertar seu país dos invasores romanos e dos abutres publicanos, judeus cobradores de impostos que sugavam o sangue do seu próprio povo.
O vento desalinhava seus longos cabelos e ele o sentia como se fosse a mão amorosa do Asfaltitus a acarinhar-lhe a cabeça. O bater suave das ondas no barco era como a voz do seu lago que cantasse para ele. Cantava-lhe a elegia dos heróis zelotes, dos que davam felizes suas vidas para que um povo pudesse ter um mínimo de esperança no resgate de sua dignidade. Deslizando célere na noite escura do Mar Morto, Nathan Zelote vivia um dos seus raros momentos de paz absoluta.