Santos e demônios
Entre um jogo e outro, é bom colocar um olho noutra coisa. Um livro estranho, por exemplo. Trata-se de exercício que requer disciplina, além de método, para se coabitar em mundos opostos e em séculos distantes. No caso, entre a Copa no Brasil e os desertos da Síria e do Egito há quinze séculos, por volta do ano 350. Ando lendo um livro estranho, de fascínio e horror. Escrito em meados do século passado por um francês de nome Jacques Lacarrière com título ‘Padres do Deserto, homens embriagados de Deus’.
Dentre muitas, o livro narra as histórias de dois homens que viveram no século IV, Antão e Pacômio. Deixaram o mundo e avançaram pelo deserto para viverem em cavernas ou buracos por décadas seguidas, em estado de oração e contemplação. Anos depois de solidão e sofrimento, enquanto resistiram às investidas do demônio, fundaram os primeiro mosteiros cristãos. Homens que viveram na fronteira da morte e estavam, milhares deles naquela época, em busca do êxtase místico do encontro com Deus. O que lembra a atual Índia, mística, contraditória e atraente sempre.
Tudo muito estranho, mesmo sendo conhecidas as histórias dos padres fundadores da igreja, além de outros sábios como Macário, Jerônimo e Agostinho. A mudança do paganismo para o cristianismo talvez tenha sido a maior de todas as transformações já vividas pela espécie humana. Nós, da perspectiva do século 21, não imaginamos como o demônio fez parte da vida humana. Agora, no laicismo, Deus é apenas um apelo de última hora. Daí, talvez, advenha a desesperança e o desamparo dos tempos modernos.
Os santos passaram por aqui. Parecem tempos imemoriais. O demônio, anjos decaídos, podem não atuar de forma insinuante como nas miragens de desertos abertos e cavernas escuras, mas incomodam e infligem sofrimento e medo em milhões de pessoas, que torcem aqui e ali em nome de falsos deuses e de valores efêmeros e voláteis. Esse é o fascínio da leitura, capaz de nos conduzir a viagens envolventes sobre santos e demônios nos desertos do Egito e da Síria, quinze séculos depois dos acontecimentos.