📖 “Manoel da Nóbrega” (Milton)
MANOEL DA NÓBREGA: O FUNDADOR de São Paulo é o CRIADOR do Rio de Janeiro
… O jovem Estácio sentia-se mais abatido do que nunca. Que cruz tomara sobre seus inexperientes ombros! Voltara de Portugal com a específica incumbência de fundar uma vila bem no coração das terras tamoias.
Ou seja, no meio de milhares de ferozes inimigos. E com suas poucas centenas de homens em armas! Agora, fundeado em São Vicente, encetara a difícil subida da serra até Piratininga, para se aconselhar com Padre Nóbrega, como lhe exigira seu tio Mem de Sá, o governador geral.
– Não posso, padre! É responsabilidade demais para mim. Tenho só 21 anos. Se eu fracassar… Não somente eu estarei acabado antes de começar, mas serei responsável pelas mortes de todos estes bons homens que lidero agora.
Padre Manoel da Nóbrega, forte e rijo nos seus 44 anos, apesar das excruciantes dores nas varizes das pernas – ainda hoje o jovem José de Anchieta tivera que ajudá-lo, carregando-o duas vezes sobre suas costas corcundas – era um verdadeiro rochedo de determinação. Nada o faria desistir do seu plano de dar segurança à vila de São Paulo de Piratininga. E isso significava atacar o inimigo tamoio na baía de Guanabara. Fixou seus olhos com inconteste autoridade no jovem comandante português, tão moço, tão inexperto!
– Você pode meu filho! Não só pode, como deve. Deve essa atitude e essa ação a todos nós, os que vivemos e nos arriscamos nestas terras do sul. Deve aos abnegados de São Paulo de Piratininga, de São Vicente, de Cananéia, que a toda hora sofrem os mortíferos ataques desses tupinambás que se confederam como tamoios. E deve-o a sua rainha, que o encarregou pessoalmente de fundar essa vila fortificada lá no coração do território inimigo.
– Mas, padre, se eu falhar… Como poderei me defender perante Sua Majestade?
– Você não precisará se defender. EU o defenderei, eu falarei por você. Eu assumo toda a responsabilidade. Deus estará com você e seus homens. E eu e José de Anchieta estaremos também. Subiremos para a Guanabara com todos os bergantins, galés e canoas que conseguirmos juntar aqui no sul. Cheios de bravos combatentes. E de Ilhéus virão mais naves grandes, virão os irmão italianos Bartolo, grandes capitães, à frente delas. Teremos uma grande força, poderemos fazer face aos tamoios, você vai ver.
Estácio de Sá deixou-se ficar alguns instantes com os olhos perdidos no infinito, sem nada ver, apenas pensando em sua espinhosa missão: tomar a baía de Guanabara para Portugal. Tomá-la em definitivo dos milhares de tamoios que a cercavam e dos remanescentes franceses.
Ali mesmo, poucos anos antes, em 1555, o almirante francês Nicholas Durand de Villegaignon havia constituído sua débil França Antártica. Sem apoio do rei francês, cansado e desgastado, ele havia voltado para França em 1559 e, um ano depois, em 1560, Portugal desferiu o golpe de morte.
Seu tio Mem de Sá, com a sólida ajuda deste mesmo inquebrantável padre jesuíta Manoel da Nóbrega e de forças que acorreram de Santos e de São Vicente, havia conseguido derrotar os 300 franceses remanescentes e destruir completamente o forte de Coligny na ilha e todas as edificações da praia do Flamengo.
Mas cerca de 30 franceses permaneceram no lugar, escondidos nos matos e vivendo com os índios. Eles mantinham aceso o comércio do pau-brasil com as naves francesas. E mantinha-se também, acirradíssimo, o ódio dos tamoios aos portugueses invasores. Rompida a débil paz de Iperoig, os ataques recrudesceram de parte a parte.
Por outro lado, Manoel da Nóbrega, um político de raríssima habilidade, tinha certeza que não poderia haver tranquilidade enquanto a resistência dos tamoios persistisse. Na sua concepção, era essencial golpeá-los colocando um núcleo fortificado bem no centro de suas terras, que se estendiam de Cabo Frio até Bertioga. E esse centro nevrálgico, para ele, era na baía de Guanabara. Era ali, exatamente ali onde os franceses haviam tentado fixar sua malograda França Antártica, que deveria ser erguida a cidadela que embasaria a criação de uma verdadeira cidade europeia.
E essa cidade, que ele e somente ele, com sua habilidade diplomática e sua persistência incansável, havia conseguido convencer a própria rainha a criar, essa cidade era fundamental para que São Paulo pudesse existir. Paradoxalmente, uma cidade que seria criada por paulistas e portugueses, no que viria a ser o Rio de Janeiro, haveria de ser o baluarte que garantiria a sobrevivência de São Paulo.
O hábil e visionário Manoel da Nóbrega foi assim, o grande cérebro por trás da fundação das duas maiores cidades do Brasil contemporâneo. Louvam-no por isso os paulistanos de hoje; esquecem-no, por desconhecimento histórico, os cariocas em sua maioria. Homenageiam apenas Estácio de Sá, cuja passagem pela Guanabara, depois da fundação da vila, foi meteórica, abatido logo a seguir que foi pela flecha tamoia envenenada que o atingiu no olho e levou-a à morte lenta e sofrida 21 dias depois.
Nóbrega a Anchieta estiveram com ele até o fim.
“A morte de Estácio de Sá – Óleo sobre tela – Antônio Parreiras, 1911)
(Excerto de “VILLEGAIGNON NO INFERNO” – Milton Maciel