📘 Memórias de um tempo estranho (Apolinário)

Memória de um tempo estranho

 Apolinário Ternes

Recorri à carteira profissional para conferir a data de ingresso no jornalismo: 1º de março de 1968, na Rádio Nereu Ramos, de Blumenau, então sob o comando de Evelásio Vieira, o Lazinho, ex-jogador de futebol, que seria deputado e senador da República. Nos tempos em que a República dormia sob o sono da ditadura. O Ato Institucional nº 5, que fechou o Congresso e impôs a censura, seria assinado no dia 13 de dezembro de 1968. Naquele mês dezembro, por ironia da vida e paradoxos do tempo, me transferia com armas e bagagens para A Notícia, para “redatoriar” o jornal “Cidade de Blumenau”. O ano de 1968 se mantém como o grande símbolo e ícone da histórica “década de 1960”, que, adiante, a Veja traduziria como “o ano em que tudo mudou”. Foi, de fato, um ano para nunca esquecer. Além do “fechamento” do regime militar, os jovens se tomaram em indignação e produziram “bárbaras” revoltas nas principais praças do mundo. Um ano invencível, da pílula anticoncepcional, dos Beatles, dos assassinatos de Martin Luther King e Bob Kennedy. E no ano seguinte, teríamos a “conquista” da Lua e o primeiro transplante de coração no Brasil, de autoria de Euriclides de Jesus Zerbini. 1969 seria o ano da trombose em Costa e Silva, da Junta Militar e, depois, Garrastazu Médici. A década de 1970 seria inaugurada com o TRI, no México; a ponte Rio-Niterói e Itaipu. Nascia o Brasil Grande.

Minha estada no jornal “Cidade” acabaria já em dezembro de 1969. O jornal acabou desativado por decisão da “matriz”, o jornal A Notícia, de Joinville, que mantinha o diário de Blumenau. E por aí, acabei em Joinville, para desempenhar as nobres funções de “repórter” geral de A Notícia. Nos tempos do Brasil Grande, o jornalismo na trepidante Joinville ainda se fazia na base do chumbo quente, da linotipo e do telefone fixo, preto e improvável. Naquelas máquinas de escrever pesadas como o passado, ou super-leves, anunciando o design da modernidade. Tínhamos as duas na redação.

Tempos delirantes de entusiasmo muito e pouca técnica. Jovem em quase tudo, minha imersão no jornalismo ocorreu simultaneamente com os muitos medos da nação. Quase nada podia e quase tudo se temia. A censura chegava através de breves comunicações telefônicas, a partir do Exército, indicando que “tal assunto” ou “tal matéria” estava cancelada. Nada de publicação. A censura ocorria em torno do noticiário nacional, ou mesmo internacional. Nos assuntos locais, valiam o medo e a auto-censura. Que os mais antigos chamavam de prudência e precaução. Aqui se podia tudo, ou quase. Falar mal de delegado de polícia, dava cana. E deu. Da polícia militar, menos ainda. Dava cana. E deu. Com direito a espancamento em rua pública, nas proximidades do quartel. Fui uma das vítimas da truculência policial que se servia da ditadura para controlar repórteres atrevidos. Fui preso e espancado dias antes da chegada da Miss Brasil – Vera Fischer – para abrir a “Festa das Flores”. Foi um rebuliço elegante na Sociedade Harmonia-Lyra, quando colegas denunciaram o caso ao governador, pouco antes de um banquete. O governador mandou prender o policial, que foi expulso da corporação e, depois, queria se vingar do jornalista. Foram semanas de esconde-esconde, como gato e rato, dorme aqui e acolá, até que o meliante recebesse “recomendação” (da própria polícia) para desistir de me “apagar”.

Apesar do cinza-chumbo do cenário nacional, por aqui, excetuando política e polícia, se podia escrever sobre quase tudo. E escrevi, com medo e raiva, sob a indomável fúria de jovem e romântico. Mantive, em A Notícia, nos primeiros anos da década de 1970, a coluna “Teclados Sem Censura” e, em cerca de 1500 crônicas tentei interpretar o Brasil do meu tempo. De anos pesados e de jornalismo leve, mas apaixonado. Não sabíamos, mas repetíamos Nélson Rodrigues, sem o talento daquele, mas certamente com a mesma empáfia. As crônicas ficaram como sucesso ululante, e registro de um tempo paranóico e de ditadura pesada, que foi abrandando com Ernesto Geisel, a partir de março de 1974. Os nomes da época, Delfim Neto, Golbery do Couto e Silva, Orestes Quércia e Luiz Inácio, o metalúrgico.  Falou-se, em mídia turva e nas entrelinhas, também de Vladimir Herzog, Manuel Fiel Filho e de Armando Falcão.

Nos anos 70, em A Notícia, se compunha o título de cada página a mão, letra a letra. Tecnologia gráfica dos anos 1930. Nas coleções de fontes – incompletas – com décadas de uso. Coleções de fontes que vinham desde os tempos de Aurino Soares, o fundador do jornal, em 1923. Mas tínhamos linotipo, rádio-escuta (com o intrépido telegrafista Pio) e, nas horas de apuro, “giletepress”, a inocente utilização da gilete para recortar textos publicados em outros jornais (de São Paulo). A “frota” da empresa se resumia a um fusca e uma kombi, em péssimas condições de uso. O repórter de “Cidade” – eu – fazia a “cobertura” da Câmara, prefeitura e delegacia de polícia em rápidas caminhadas no quadrilátero do poder no ainda modesto “centro” urbano da cidade. Jornalismo de improviso, mas de paixão. E havia a concorrência irresoluta do “outro” jornal, o não menos tradicional “Jornal de Joinville”, que pertencia aos Diários Associados. “Brigava-se” muito para não sermos “furados” pelo concorrente. Nas três principais áreas: esporte, política e polícia.

De 31 de janeiro de 1980 em diante, contudo, a modernidade, enfim, chegaria ao “nosso” jornal. Em novos tempos, com Moacir Thomazi na presidência da empresa e Luís Meneghim na direção de redação, iniciamos, com algum atraso, a recuperação dos tempos perdidos. Foram anos de investimentos tanto em tecnologia, quanto em qualificação de pessoal. A redação foi se ampliando, ano a ano. Novos produtos. Novos cadernos. Mais profissionais. Ainda no começo dos anos 70 o “corpo de redatores” não chegava a 10, nenhum com o curso respectivo, ou profissional formado em curso superior. Os tempos mudaram, inclusive com a regulamentação da profissão, que exige diploma. Os jornalistas eram escassos, mas multiplicavam-se os talentos, que se descobriam “nascidos” para a missão. E, assim, explica-se como o jornalismo, num Brasil recente, foi praticado com garra e notável paixão. Não se trata de nostalgia ingênua, mas a “globalização” matou determinado tipo de jornalismo e introduziu novos valores, e novos “modos de fazer”. Com Internet e celular. Computador e Google.

O jornalismo, dos anos 90 em diante, tem se transformado numa imponderável corrida de obstáculos, em que a tecnologia e a globalização acabam por exibir produtos diferenciados, múltiplos e, acima de tudo, improváveis. Quase tudo o que existe hoje, pode desaparecer amanhã. Não há dúvida, o “sistema” antigo enfrenta uma dura crise. O maior de todo os desafios diz respeito à criatividade e inovação. De qualquer forma, os novos tempos estão a produzir, perigosamente, jornais “bonitos e banais”. Bem editados, cheios de cores e infos, explicações e “acompanhamentos”, mas os jornais de hoje interessam a públicos cada vez menores. A reinvenção do jornalismo está para ser feita. O que temos em curso, são experiências e movimentos especulativos em busca de leitores que estão sumindo. Daí “embalagens” cuidadas, conteúdos-interativos, inovações constrangedoras, tudo em busca de leitores que, a rigor, estão obtendo a mesma informação antes e em outros lugares. O jornal-papel, se não se reinventar – e com talento – pode virar, de fato, papel-jornal para embalar peixe. Nos mercados do interior, porque nos centros mais desenvolvidos, nem para isto servirá. É a crise da modernidade, criando um desafio espetacular para as empresas de comunicação. Os jornalistas, contudo, sempre terão mais trabalho e menos emprego. A profissão está em alta, como revelam os índices de procura de vagas na Academia. O mercado (ainda) não está saturado, as opções são muitas e inesperadas, até. Os talentosos, geralmente esforçados, também, terão espaço. O jornalismo sobreviverá aos tempos indolentes e indiferentes de hoje, onde, infelizmente, se multiplicam os jornais “bonitos, baratos e banais”.

 

(*) Apolinário Ternes. Formado em História e Direito, é mestre em Educação e Cultura pela Udesc e tem 25 livros publicados, abordando a história de Joinville, de empresas e instituições do Norte catarinense, além de obras de ficção.

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