Meu pedreiro (Hilton)

MEU PEDREIRO

 

Hilton Görresen

 

Na época em que cismei de construir um “puxadinho” lá em casa, aprendi muita coisa com meu pedreiro. Seu Jorge era um cinquentão alegre, de rosto vermelhaço e bigode branco. Aparentava ser mais velho do que era, curtido pelo trabalho de longos anos debaixo do sol. Coisa rara, não chegou desqualificando o serviço do pedreiro anterior, nem pedindo adiantamento, o que ensejou minha confiança nele. Nas horas de descanso do serviço, gostava de uma “prosa”, jogando constantemente as pupilas dos olhos para cima como se buscasse informações no cérebro.

Nunca ouviu falar de Machado de Assis ou de Eça de Queirós, nem ao menos de Paulo Coelho, mas sabia tudo de árvores, plantas e passarinhos. Sabia como preparar a carne de lagarto, que havia encontrado no terreno baldio ao lado e matado com uma porretada. Aliás, com sete porretadas, pois acreditava que o danado tinha sete vidas, assim como os gatos. E lambia os beiços; à noite teria uma refeição de lorde.

Nada sabia de artistas de cinema, para ele até mesmo o nosso Oscarito devia soar como um tipo de chips de queijo e cebola. Para que se preocupar com conhecimentos inúteis? O bom mesmo era sair do serviço, chamar o compadre, após a janta, e se abancar na mesa da cozinha rústica, num papo comprido e alegre regado a uma boa cachaça. Sua vida é o agora: trabalhar, beber, ficar de papo com amigos, sair orgulhoso com a gaiola do curió pendurada nos dedos.

Em sua cabeça havia espaço de sobra para os segredos da profissão. Mesmo que fosse quase analfabeto, poderia colocar muito engenheiro no bolso. Tive de convencê-lo que a cultura das pessoas não estava só no letramento, como chamam hoje em dia o processo de alfabetização, nem nas inúmeras leituras. Sua cultura, seus conhecimentos, eram para a vida, eram os necessários para a sobrevivência.

– Veja só, seu Jorge, já li muitos livros, mas sou analfabeto em construções. Não distingo um caibro de canela de outro de cambará, isso para ficar no mais fácil. O senhor poderia ser meu professor em mil coisas.

Ele me olhou espantado, mas vi que seus olhinhos brilharam por entre as rugas. Creio que nunca se havia visto desse modo. Na verdade, era isto mesmo: eu sentia inveja de sua vida simples, liberto de “obrigações” sociais e intelectuais que nos levam a absorver cada vez mais conhecimentos e informações. De que me vale ter lido as obras de Machado de Assis e Eça de Queirós, se nem ao menos aprendi a preparar carne de lagarto?

 

TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS. EM 10.10.2020

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