Mil e uma crônicas

Crônica Joel Gehlen, em A Notícia, 27 de junho 2019

“Não tens outra missão na vida senão realizar a sua divindade interna e atingir a iluminação.” Assentei a frase sobre a tela branca do computador e relutei por mais de uma hora, evitando compor este texto. Faço essa escrita hebdomadária para o jornal há mais de 20 anos. Quatro por mês; 48, por ano; 480 por década. Não seria desarrazoado se cravasse a marca de milésima primeira crônica exatamente nesta. É a tarefa a que me dedico com maior regularidade. Mas não com a mesma constância, sempre com muitos altos e baixos, e dúvidas que me querem fazer desistir. Minha mente lê e escreve em silêncio, ininterruptamente. Estou sempre elaborando frases, poemas e narrativas. No mais das vezes, não passam de palavras ao vento, dispersões de uma natureza distraída. Já esta crônica, por mais insignificante que seja, ela me porta.
O aikido é uma arte marcial filosófica, tributária do código de ética dos antigos samurais e alinhada ao pensamento estoico. A frase citada por Maruyama Sensei, o mestre que exerce inspirada e fiel instrução desse legado no Brasil, tornava de corpo presente Morihei Ueshiba, o criador do aikido. A tarde de domingo fechando o feriado de Corpus Christi era um abismo azul que gritava em nossos sentidos. Formávamos uma lua crescente de corpos fatigados e espíritos atraídos para sua presença, como mariposas em torno da luz. Os faróis não se rendem ao torpor dos nevoeiros nem ao furor das tempestades. Há na sua figura um senso de destinação, como se soubessem que nas adversidades são ainda mais necessários.
Jorge Luiz Borges dizia que a expressão “mil e uma”, mais que quantificar, dá uma ideia de infinito. Então, queria que a milésima primeira crônica começasse assim: “Não tens outra missão nessa vida senão realizar a sua divindade interna e atingir a iluminação”. E que nela se repita para sempre a cena de Sensei Maruyama, em pé, no centro do tatame, comprometendo nossos corações ofegantes com a centelha de eternidade que habita cada ser, e se estende pela sucessão de vindas e vidas: a nossa semente de infinito.

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