Muito estranho (Joel)

Muito estranho

Em 1982 já estava em Londrina, mas ainda era um garoto assustado que carregava a terra de Mamborê por debaixo das unhas e os pés dentro de congas desbotadas. Terminava a aula no colégio um quarto para as 23 horas, o portão do pátio interno despejava na rua uma turba de jovens sonolentos que se dispersava na noite fatigada e sem ar do verão londrinense. Mais que anônimo, sentia-me um clandestino, buscando o denso sombreado das amendoeiras para apertar meu passo por umas 15 quadras até chegar em casa.

Havia uma colega de classe, ainda mais silenciosa, que fazia o mesmo percurso, pois morava duas ruas à frente. Não lembro seu nome, mas tinha uns olhos de açucena e uns cabelos que lhe vinham até a altura do ombro. Passei a acompanhá-la até sua casa. No princípio, sem saber se meu passo hesitante em seu encalço lhe agradava ou oprimia, guardando a distância que nossa timidez fazia necessária. Levei algum tempo até ajustar a condição de idílico acompanhante.

Íamos lado a lado, cada um abraçando os seus cadernos. O livro de ciências apertava os seios dela. Eu sabia que na lição de linguagem havia um poema do Vinícius com seu tanto de carnalidade e transcendência, mas não tinha coragem de abrir a página. Caminhávamos da Vila Nova até o Shangri-lá, atravessando a larga faixa escura da linha férrea que tanto atemorizava as meninas. A casa dela tinha um muro baixo e um pequeno jardim dedicado.

Chegávamos, ela entrava quase com sofreguidão, punha “Muito Estranho”, do Dalton, para rodar no compacto simples, depois voltava ao portão, com ar de “tenho de entrar, pois é tarde”. Olhávamo-nos cheios de promessas, as mãos se procurando sobre o muro, mas sem ousarem se encontrar. Eu aguardava no portão de ferro forjado até que ela entrasse, fechando a porta devagar. Sempre deixava para trás uma réstia de sorriso e a ilusão de um perfume. Sem o material escolar, ela parecia ainda mais bela dentro do vestido claro, estampado de flores mínimas. Fazíamos planos em silêncio. Eu dava meia-volta para dentro da noite sufocante, explodindo uma felicidade sempre adiada. Acreditávamos que para sempre haveria outra noite, outro retorno depois da aula, e a mesma Lua a vigiar o céu só para conduzir os nossos caminhos. Não sabíamos que pretérito seria o tempo preferido do presente.

Joel Gehlen

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