Nada é para sempre

Faz muito tempo, ora se faz. Aconteceu lá pelos idos dos anos primeiros de um século já findado, início da colonização…

Caso ainda não contado, desenrolado em campos de boa lavoura no norte catarinense. Solo fértil e abençoado no qual se plantando tudo dá.

Lavradores ali chegaram, pra mais de cinquenta. Caravana de gente simples e cheia de esperanças. Gente aflita por se apossar de terras chamadas devolutas. De fincar pé em glebas desconhecidas, duramente ajustadas de papel passado, com garantias de um futuro promissor.

Homens preocupados, mulheres cansadas e crianças chorosas… Pudera! Viagem angustiante em carroções lerdos, sem conforto, e noites mal dormidas… Dias que pareciam infindáveis até que… Finalmente, o milagre! Rostos duros e amargurados se abriram em largos sorrisos ao verem a grande lagoa de águas cristalinas, enriquecendo o sopé de belo outeiro. Um cenário de sonho…

Linhas puras de belas árvores refletidas no mágico espelho d’água. Rédeas puxadas, carroções parados e corações batendo em pleno descompasso. Eles haviam chegado!

A luz do entardecer, qual pinceladas de mestre, dava o toque final. E ninguém precisou questionar… Lágrimas a escorrer pelos rostos emocionados diziam tudo. Ali eles iriam morar. Ali iriam plantar e colher.

Uma vez mais a Mãe-Natureza havia se excedido em dádivas, criando singular barragem em terreno elevado. E a boa água represada era tudo o que aquela gente precisava para reiniciar, começar uma nova vida.

Na parte baixa, em volta da grande lagoa, casas rústicas feitas de troncos e barro, cobertas de sapé, foram logo surgindo e dando início ao povoado. Canais e valas rudimentares, abertas na barragem natural, passaram a levar água em abundância para cada moradia. Outras escavações, ainda maiores, foram feitas para irrigar plantações que despontavam como gratificantes tapetes de muitas cores. Chuvas haveriam de alimentar a lagoa dadivosa… E eles teriam água para sempre.

Frederico, no entanto, não gostava daquilo. Ele vivia o tempo todo implicando, coçando a cabeça, afirmando que as escavações estavam erradas e que um dia a água podia acabar.

Na opinião da maioria, aquele sujeito era um chato. Cara de pouca fé, pouxa vida! Não seria agora, depois de tanto trabalho, que o bom Deus deixaria a lagoa secar.

Por sua vez, Alaor era o homem forte daquele povoado que não parava de crescer. Desde o início ele havia tomado rédeas em suas mãos. E todo mundo passou a confiar no sábio orientador, uma espécie de prefeito. Se Alaor dizia sim… era sim. Se Alaor dizia não… era não. Todo mundo confiava nele, menos Frederico. E Alaor já estava perdendo a paciência.

– Você diz isso, Frederico, porque não usa o nosso sistema. Vive lá no morro, afastado da gente como se eremita fosse, mas não deixa de vir buscar água aqui em baixo.

– Só quando minhas reservas acabam – respondia Frederico. – Vocês deviam fazer o mesmo.

Alaor achou graça, mas sabia do que aquele sujeito solitário estava falando. Cada vez que chovia, era mais água que Frederico acumulava em dois velhos tonéis de madeira. Raras vezes ele precisava transportar água em cântaros no lombo de seu burrico ladeira acima.

Alaor sacudiu a cabeça e apontou para o alto.

– Está vendo aquela nuvenzinha lá em cima? Deus não se esquece da gente e vai continuar mandando água pra lagoa. Mais água pra você transportar no seu burrico. Vê se te acalma, homem de pouca fé!

Frederico, no entanto, não perdia a birra. Sempre que voltava da lavoura era a mesma coisa. Ficava olhando para novas casas sendo construídas no baixio ao lado da grande lagoa e não se conformava. E voltava chamar atenção para comportas mal fechadas e para o gasto excessivo de água.

– Vê se te enxerga, Frederico!  A gente vem usando dessa água há tanto tempo e a lagoa é sempre a mesma.  Essa água não vai acabar nunca!

– Nada é para sempre – respondia ele. – Nada é para sempre.

Os dias passando, igualmente os meses, e Frederico de olho na barragem, nas escavações que pareciam não parar.

Nas manhãs de domingo os lavradores costumavam se reunir no centro do povoado para agradecer a Deus pelas boas terras, pelas plantações e pelo saudável crescimento do povoado. Numa daquelas manhãs, Frederico se encheu de razão e falou alto, em bom tom para que todos ouvissem.

– Não estou gostando nada disso… Vocês estão enfraquecendo a barragem e vão acabar dando com burros n’água!

Não o deixaram acabar de falar.

– Pelo amor de Deus, Frederico… Se você vai começar com a ladainha de novo é melhor pegar seu burrico e se mandar pro morro!

– Concordo – disse outro. – A gente está aqui há mais de um ano e a água está todinha aí. Dá um tempo…

– Deixem o Frederico falar – interrompeu uma das mulheres.

Um breve silêncio.

– Fala, Frederico – disse outra mulher. O que está errado outra vez?

– Se não reforçarem a barragem, juro que ela não vai aguentar! Em pouco tempo vocês mudaram o que a Mãe-Natureza levou milênios pra construir. Um dia vai tudo por água abaixo.

A risada foi geral. Foi preciso Alaor levantar os braços para todo mundo parar de rir. Sabiam que a palavra final estava com ele.

– Ninguém tem tempo pra tais bobagens, Frederico! Basta olhar em volta… Estamos aqui pra plantar e colher, não pra construir barragens.

Quando Frederico deixou o centro do povoado, muita gente ainda ria. Alguns lavradores, no entanto, se entreolharam. E dali para frente ninguém mais viu Frederico na lavoura. Só de longe… Lá ia a figura do eremita e seu burrico transportando pedras numa pequena carroça, ladeira acima.

– Vocês sabem o que Frederico anda fazendo? – disse alguém no encontro de domingo. – Ele está construindo uma represa.

– Uma represa? – questionou Alaor. – Onde?

– Nos fundos da casa dele, lá no alto do morro. Ainda ontem passei por lá e o Frederico não para de trabalhar.

Foi assunto da semana.

– O homem deve estar louco. Uma represa só pra ele?

– Está claro como água que o coitado deve estar delirando. Sonhando com o fim do mundo.

– É isso aí, gente! Deve estar se preparando para o Apocalipse.

O segredo de Frederico era aquele olho d’água no fundo do terreno. De início ele achou que era sobra de água da chuva, escorrendo pelas pedras e saindo sempre no mesmo lugar. O fato é que aquele filete d’água, embora fino, parecia não ter fim. Ele calculou que se ali construísse um reservatório podia captar água da chuva e também daquele filete interminável. Não mais precisaria descer o morro para buscar água da lagoa.

E foi o que Frederico fez. Com calhas de bambu desviou a água do filete enquanto ia cercando o local com pedras e bom barro de olaria. Coisa para muitas luas…

Alguns lavradores já não riam quando ele afirmava:

– Falo como amigo, gente! A boa água não deve ser desperdiçada. Um dia ela pode faltar. Nada é para sempre.

Então chegou o período das chuvas. As águas de março… Primeiro, uma carga leve que parecia não parar. Depois aumentando, aumentando e acabando por se transformar no maior aguaceiro. No início os lavradores ficaram contentes com mais água para a lagoa…

Mas, o que ninguém esperava aconteceu…

No terceiro dia águas desciam pelo outeiro em grande volume, derrubando árvores, carregando tudo pela frente, galhos, pedras, barro…

Aquela gente nunca tinha visto um temporal como aquele. A lagoa foi enchendo, enchendo e o que sobrou da barragem natural, enfraquecida pela mão do homem, não aguentou. Rompeu-se, abrindo uma grande passagem por onde toda água escoou, inundando o povoado, levando cercas, partes das casas e desaguando nos campos, destruindo a lavoura. Nada podia ser feito.

Os lavradores tentaram salvar o que foi possível, mas não tinham como reter as águas. Quando as chuvas acalmaram, o que sobrou da lagoa foi uma extensa e inacreditável camada de lama.

Da parte alta, Frederico olhava desolado para o triste espetáculo que vinha pedindo a Deus jamais acontecer. Sabia, no entanto, que o Homem lá em cima não podia olhar por tudo. Uma parte cabia aos homens aqui em baixo.

Alaor estava desesperado. Haviam confiado tanto nele… E ele estava, agora, completamente desorientado.

– O que faremos? Tanta chuva e a gente sem água…

– Vamos reforçar a represa como já devíamos ter feito – respondeu Frederico, incentivando-o. – As chuvas haverão de voltar e, desta vez, a lagoa não desaparecerá.

Alaor havia aprendido a lição. Cabisbaixo e incrédulo, ele murmurou:

– E como viveremos até lá, sem água limpa para beber e cozinhar?

Frederico sorriu.

– A boa água que eu tenho represada lá em cima será suficiente para todos até terminarmos de reforçar a represa… Se todos souberem economizar!

 

 

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