O amor nem sempre é primavera (Joel)
O AMOR NEM SEMPRE É PRIMAVERA
Crônica Joel Gehlen, 4 de outubro 2018
Há um mecanismo que faz gritar dentro da gente o silêncio dos ipês em flor. Atentos a esse clamor de pétalas, saímos os dois dentro da tarde de domingo, pelas ruas de Joinville, para dar de beber às árvores de galhos em chama. A cada aproximação, eram como cães assustados, os ipês. E punham-se a fugir imersos em sua inescapável presença. O Kenzo se diverte caçando “pokeipê”: “Olha lá um!”; “Nossa, aquele é imenso…”; “Veja, ali tem dois!…” De minha parte, giro o dial do rádio da memória e todas as estações tocam a voz dolorida e doce de Ângela Maria. Os ipês se despetalando fazem coro ao adeus da maior cantora do Brasil. Fiam seu resplender sem sombras, arfam com o peito das canções mais lindas e tecem alfombras de fogo pelo chão. O Sol se põe e a garganta de Ângela estende o último agudo ao sem-fim.
E assim caiu a tardinha num tom abolerado, entre melancólica e sensual. Veio a noite e não voltaria a surgir a manhã sem que a chanson perdesse a voz de Charles Aznavour. No dia mal estremunhado, levo o menino à escola. Os ipês já não são os mesmos da tarde anterior, agora espelham sua face no chão recoberto de pétalas, imitam a miríade de círios com que se velam as despedidas. O escarcéu do silêncio naqueles sóis decaídos acende o fogo postiço das lembranças. Outra vez, o destino nos colocou face a face, como naquela tarde em Paris, caminhando na orla do Sena: “Non, Je n’ai Rien Oublié”. E o amor saído de uma canção há de sempre andar de mãos dadas dentro da noite, pelas ruas desertas, embaixo de um chapéu quebrado na testa, dentro do seu vestido de petit poá. Respiro seu cabelo que desliza pelo vento e as palavras se acotovelam entre nós, querendo falar, mas seguimos em silêncio, “toi et moi”.
Ah, como o tempo lhe favoreceu! Nas imagens antigas, tem uma magreza desajeitada, roupas espalhafatosas, e a voz imita o olhar levemente ácido. Com o passar dos anos, a dramaticidade da dicção superou os laivos de ironia. Tornou-se inveteradamente básico. Inebria plateias vestido de preto, a noite mergulhada no palco, um foco sobre si – como Edith Piaf gostava de se apresentar – e a companhia solitária de um piano. Há de continuar assim, sempre primavera, na estação da eternidade.