O boi-fria que espia a chuva e sofre (David)

O BOIA-FRIA QUE ESPIA A CHUVA E SOFRE
David Gonçalves
Chovia, chovia e chovia. Abdias olhava a chuva oblíqua com olhos cravados nos campos de algodão e nas fazendas de cana.
Sentia na boca um gosto enferrujado de moeda antiga; no corpo, enquanto olhava a chuva, uma sensação de coisa quebrada. Apertou um maço de cigarros vazio e amassado no bolso. A chuva lhe dava uma vontade louca de fumar. Em vez disso, pediu mais um mercedinho de pinga. Sorveu devagar, bebericando, como se degustasse.
Tinha muito que agradecer a muita gente, mas estava se lixando para o que desse e viesse. Sacou do bolso uma folha de papel amassado e se pôs a ler.
“Vou-me embora.
Levo comigo seu rosto alvo e reluzente, como uma estrela cintilante.
Levo tua fotografia 3×4, preto e branco na carteira vazia e rota.
Levo as tuas falsas promessas de amor escritas num guardanapo de papel num bar qualquer.
Levo comigo uma folha de trevo, quatro folhas, na carteira vazia, que você me deu há dois anos quando fiz dezoito anos.
Levo duas cicatrizes na testa, por causa daquela briga que você provocou naquela quermesse.
Levo uma passagem de ônibus da Viação Garcia para bem longe, sem volta, noite adentro, tendo as estrelas como minhas guias.
Levo o perfume do teu corpo misturado com a grama verde, detrás do celeiro, quando fizemos amor pela primeira vez.”
Olhar vago, de cachorro perdido, indeciso, guardou a folha amarrotada no bolso. Deveria pedir para alguém entregar aquelas palavras sofridas? Ou remetê-las de onde estivesse, amanhã?
Um boia-fria, no canto do armazém, começou a picar fumo de corda. Picava devagar, mecânico, enquanto olhava a chuva. Novamente a vontade de fumar. Para ele, Abdias, valia a pena mais morrer que seguir vivendo assim naquela terra. Cortando cana, sempre com dores nos rins, dizendo sim-senhor aos patrões, que desfilavam nas caminhonetes novas. Nascera, afinal, para lustrar sapatos dos outros? Mendigando o pão, mendigando o amor, mendigando o ar pra respirar e as sobras dos prazeres. Se ficasse por ali, no dia menos esperado, acabaria dentro de um caixão, ou mataria alguém sem saber por quê. Tinha muito medo de cometer uma besteira irreparável. Já evitava o ser humano como se fosse fera solta ou cobra.
Aquela chuva… De onde estava, mirava a chuva branca sobre os campos brancos de algodão. Mais além, o verde do canavial onde ele dava, todos os dias, 1350 facãozadas. Voltava sujo de fuligem do eito por causa da queimada. Ouvira bem o que o patrão dissera: “No ano que vem, máquinas poderosas chegarão e os braços de vocês serão inúteis.”
A cidade modorra no meio da chuva. Ruas e vielas vazias. No meio da lama, um boia-fria bêbado fala sozinho com um poste. Esbraveja, difere golpes inexistentes, retirando num ímpeto o chapéu de pano da cabeça e o torce, escorrendo a água. Depois caminha tropegamente e cai de bruços na valeta.
A chuva se intensifica. Um raio corta a tarde. O coração chega a parar. As gotas pesadas batem contra as janelas do armazém e os vidros vibram. Oscila no teto a única lâmpada e se apaga. O homem que pica o fumo de corda, indiferente, vê chover e boceja. Abdias sente novamente a vontade de fumar. Protege-se das gotas de chuva que parecem quebrar a vidraça. Na rua, corre a enxurrada vermelha e, na vala, o boia-fria bêbado tenta se levantar. Abdias enfia a mão no bolso e retira o papel amassado e escreve com uma caneta Bic:
“Levo nada, não. Passo horas procurando-a, sentado neste armazém sujo, procurando-a no meio da chuva e do lamaçal, olhos cravados nos campos de algodão e nas fazendas de cana.”
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David Goncalves e outras 3 pessoas
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