O braço do juiz

O juiz de direito já era velho conhecido na comarca também já velha conhecida pelos ares abafados com que tratava seus transeuntes pelos corredores do foro. Há catorze anos decidindo perante uma das várias varas cíveis da cidade, muitos dos casos ficou conhecido pelo lado humanitário como conduzia seus processos.

Mas também tinha seu lado cômico. Não que o fizesse por ação, mas sempre por omissão. Um tanto quanto desligado, raras não foram as vezes em que aparecia de cabelo despenteado e terno amarrotado. Mas era uma boa pessoa, unanimamente falando.

Certo dia, deparou-se com uma pilha de processos em sua mesa de audiências, todos para aquela tarde. Com o peso da idade vinha o peso da preguiça. Talvez nem fosse essa, mas cansava-se de ouvir – e ter que decidir – sempre as mesmas histórias. De um lado, o que achava-se certo. De outro, o que garantia-se o correto. E aí era ele quem decidia a vida destas pessoas e de muitas outras que as cercavam.

Voltemos à pilha de processos. Entre outros, havia um que pleiteava o recebimento de um seguro de vida por perda de membro. Bastou passar os olhos para saber do caso. Não havia tempo para ler toda a petição inicial, quiçá o caso inteiro. Sete ou oito mil processos o rodeavam naquela vara cível e audiências deveriam era ser extintas, em sua humilde opinião, pois fazia com que perdesse tempo demais ali – a tarde toda, no mínimo.

Na quarta audiência da tarde, já um tanto quanto enfadonhamente acometido pelo tédio, mas misturado à questão ética e legal de resolver as questões judiciárias, pediu uma pausa ao estagiário que digitava as atas de audiências. Deu-lhe a ordem para chamar e apregoar as partes da próxima audiência que, enquanto isso, tomaria um cafezinho em seu gabinete.

Cinco minutos se passaram até o fiel estagiário interromper os pensamentos viajantes pelas montanhas da Serra do Mar a qual o juiz admirava, chamando-o à realidade para que retomasse os trabalhos e desse início à próxima audiência, do caso já mencionado.

Retornando à sala de audiências, cumprimentou as partes e seus advogados, sentando-se de frente para todos, sendo a seu lado direito, perpendicularmente, o advogado do autor e este; ao seu lado esquerdo, o advogado da outra parte e o representante da empresa.

Ato contínuo, abriu o processo na primeira e em seguida na segunda página, onde contam-se os fatos tais quais ocorreram na visão da parte autora; no caso, o autor da ação judicial.

O juiz de direito então começa a falar em voz alta a todos que aquele caso tratava-se de um caso de seguro em que o autor teria perdido um braço na empresa em que trabalhava e…

Pára por um instante, tira os olhos do processo e olha para o autor, que sentava após seu advogado, indagando-lhe em tom de indignação:

– Mas que braço que tu perdeu? – apontando com um movimento de cabeça para o braço esquerdo do autor, que o juiz conseguia ver.

Imediatamente o autor vira-se de frente para o juiz e mostra a ausência do braço direito, ato em que todos seguraram o riso diante da forma como o juiz interpelou o autor.

Recompondo-se, o juiz ainda soltou um:

– Ah… “esse” braço” – acenando positivamente com a cabeça, referindo-se ao baço direito, eis que o braço esquerdo ele obviamente tinha visão.

No foro, o caso ficou conhecido como o “caso do braço do juiz”, que mudou-se meses depois para outra comarca, a fim de aposentar-se mais perto da praia. De fato, o calor da metrópole catarinense já não lhe fazia tão bem. Dizem as más línguas que sua aposentadoria está a poucas braçadas de distância.

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