O cara que sabia voar (Hilton)

O CARA QUE SABIA VOAR

 

Hilton Görresen

 

Certo dia, o cara descobriu que podia voar. Não, não estou maluco. Está provado que voar é uma coisa possível, já houve antecedentes. Vejam por exemplo o Superman, o Capitão Marvel, o Peter Pan… Foi pura coincidência: quis pular de algum lugar alto, deu impulso e viu-se planando no ar. Com mais um impulso conseguiu subir e sobrevoar os telhados.

Comentou em casa que estava voando. Não acharam muito natural. A mãe preocupou-se: “Cuidado, meu filho. Você pode esbarrar em algum avião”. Sabe como são as mães.

Em pouco tempo, o fenômeno se espalhou pela cidade: o filho do seu Zé Mamede está voando! O Fantástico mandou uma repórter que o entrevistou, filmou-o planando no espaço azul.

Mandou encomendar uma capa colorida. Onde já se viu voar sem uma roupa adequada? A capa não ajudava em nada, mas dava um “look” tremendo. Resolveu adotar o nome de Capitão Voador. Deu com os burros n’água. O nome que pegou mesmo foi “Cequivoa”: Cê qui voa, pode desenroscar minha pandorga do fio de luz?  Cê qui voa, pode me cortar a pontinha deste pinheiro? Veja, leitor, até uma coisa simples como voar é motivo para exploração dos vizinhos e conhecidos.

Mas as coisas começaram a complicar. Não estava previsto que uma pessoa podia voar livremente dentro do país. Era preciso criar uma legislação que regulamentasse. E naturalmente criar os devidos impostos e taxas. Foi então enquadrado na categoria das aeronaves de pequeno porte. Obrigado a informar seus roteiros de vôo.

Não conseguia um emprego decente, era um funcionário que voava demais. Tentou estabelecer-se como aeroboy, entregando pequenas mercadorias. Os motoboys reclamaram, fizeram passeata, ameaçaram greve. Diziam que a profissão de aeroboy não estava regulamentada, que era concorrência desleal… Um projeto relacionado à Defesa dos Direitos Humanos propunha – disfarçadamente, é claro – restringir sua liberdade de voar. Só voaria para a direção que eles quisessem.

A única alegria que tinha era pairar no céu como uma gaivota, acima do mar azul. Depois vinha planando, em voo rasante, tirando fino de árvores e postes. Era divertido, mas isso não lhe dava camisa. Afinal, um homem precisa trabalhar, pagar imposto de renda, recolher INSS, etc., etc. Não podia ficar só flanando por aí!

Um dia ficou de saco cheio. Voar só lhe trazia problemas. Resolveu pendurar as asas, metaforicamente, é claro. Fez uma operação plástica para não ser mais reconhecido e foi embora para outro país. De navio.

 

Texto publicado no jornal A Gazeta de SBS em 16.05.2020

 

COMPARTILHE: