O catador de papel e o rio
Cercada pelas montanhas, a bela e pacata cidade se aninhava no colo do verde vale, qual jardim florido e protegido por ventos alísios vindos do mar. Do elevado mais próximo, ali do mirante, bem se podia ver o traçado perfeito das ruas e alamedas, tapete mesclado de construções típicas com tantas histórias para contar… Sobre a saga dos primeiros colonizadores, dos imigrantes do além-mar, da luta daquela gente e de sua crença inabalável de que um dia a vila se transformaria no cenário que ali estava. Vestígios indeléveis de uma cultura que haveria de resistir às mudanças advindas do progresso ferino e inevitável. O importante para seus orgulhosos habitantes era não perder as origens.
Não estou exagerando… Era possível sentir em cada um deles o amor pela cidade de muitas flores, de lindos jardins e de tantas histórias para contar. Um panorama digno do mais belo cartão-postal, não fosse aquela mancha escura a serpentear a cidade de lado a lado… A bela cidade e o seu rio poluído!
A culpa? De ninguém… é claro! Todos eram capazes de jurar que aquela mancha escura foi simplesmente aparecendo ao longo dos anos, sem que ninguém fizesse nada para que isso viesse acontecer.
E lá ia aquela mancha a cruzar toda a cidade, da periferia para o centro e de volta à periferia. Ali, onde havia uns casebres de gente humilde como o Beto, garoto de doze primaveras mal vividas e que dava um duro danado para ajudar o pai a catar papel velho pelas ruas da cidade.
Naquele dia ele não estava catando papel. Não numa manhã clara de um domingo promissor, quando já estava tudo programado… Depois da missa na igrejinha do bairro, Beto trocou de roupa, pegou o estilingue, juntou alguns pedregulhos e foi para a beira do rio. A correnteza estava boa, como ele queria. Quanto mais rápidas latas e garrafas plásticas fossem levadas pela correnteza, maior desafio de acertá-las.
Beto era um craque com o estilingue. Mão firme na forquilha, pedregulho ajustado na braçadeira de couro, borracha esticada na altura do olho e o arremesso certeiro. Não importava a distância e ele ia contando mentalmente os pontos. As latas contavam mais, meio submersas eram alvos mais difíceis. Não errava nas garrafas plásticas, quase sempre à flor d’água.
Beto não percebeu o pai se aproximar. Havia uma expressão de tristeza naquele homem levemente curvado. Olhou para o filho e pareceu ver a si próprio naquele lugar.
– Sabe, Beto… Quando tinha a tua idade, eu pescava peixes enormes neste rio.
Beto arriscou um olhar, acompanhado de um sorriso maroto.
– Está brincando, pai? O rio está morto!
O pai pareceu não escutar. Estava no passado ao continuar a falar.
– Certa vez, lembro-me bem, um deles deu uma arrancada tão forte que arrastou o anzol rio abaixo. – E o movimento do braço trêmulo ajudava a explicar. – A linha esticada correu de uma margem para a outra e eu sabia que o baita estava bem fisgado, pois levei quase uma hora para tirá-lo do rio. O bicho tinha pra mais de dez quilos.
– Está sonhando, pai?
– Pura verdade, filho! Bons tempos aqueles…
O garoto esticou as borrachas do estilingue e acertou outra garrafa boiando no rio. E nem viu o bando de garças brancas passando sobre eles, longas asas num bater cadenciado e cabeças encolhidas, pernas esticadas para trás.
– Lá vão elas pra bem longe – comentou o pai, olhar tristonho. – Lindas de morrer, elas costumavam brincar ali no outro lado quando as margens eram ainda verdes e as águas cristalinas.
Foi vez de Beto nada escutar, olhar perdido no rio.
– Dez quilos… Verdade mesmo?
O pai já havia lhe dado as costas, saindo de mansinho e resmungando como só ele sabia fazer.
– Bastava linha forte, anzol e uma minhoca daquelas bem criadas. Os peixes se foram… Só ficaram as minhocas lá no fundo do quintal.
Beto esperou o pai desaparecer entre os salgueiros e, incrédulo, sacudiu a cabeça. Peixe pra mais de dez quilos naquele rio sujo? Voltou-se e viu a garça branca na outra margem. Sorriu. Seria um presságio? A garça dava uns passos trôpegos entre lama e galhos secos, mantendo olhar fixo para águas não convidativas.
Beto colocou o estilingue no bolso e viu-se caminhando para o fundo do quintal, pois era ali que as minhocas deviam estar. Não foi preciso cavoucar muito para achá-las, bem criadas como o pai havia dito.
Linha e anzol? Encontrou-os, abandonados lá no velho rancho de madeira.
De volta ao rio, notou que a garça ainda estava lá. Podia jurar que ela havia olhado para ele, desejando-lhe sorte. Beto escolheu uma minhoca que peixe algum rejeitaria e espetou-a cuidadosamente no anzol. A outra extremidade balançando em bom tamanho para atrair o peixe.
O arremesso foi cheio de esperança, mas os longos minutos de espera foram acabando com a esperança. Do outro lado da margem, a garça fez um movimento gracioso, batendo as asas e voando. Absorto e desanimado, Beto acompanhava com o olhar o voo da garça quando sentiu o forte puxão.
A linha começou a correr e ele deu um pulo de alegria. Um novo puxão e a linha esticada, exatamente como o pai havia contado. Era preciso segurar forte, ou o baita acabaria escapando. Beto sentiu o coração disparar. Devia ser um peixe enorme. Talvez pra mais de dez quilos…
– E o pai disse que eles não estavam mais aí!
O puxão continuava. Beto tentava recolher a linha que se mantinha esticada e aos solavancos. Estava lutando há mais de vinte minutos, quando a linha mudou de direção e procurou a margem. Não trepidava como antes e já era possível recolher parte dela.
– Está cansando, peixe? – gritou Beto, eufórico.
Com auxílio de um pedaço de pau, ele foi enrolando a linha e sentindo que o peixe já não fazia tanta resistência. Era apenas o peso que vinha sendo recolhido junto à margem. Devia estar perto… Mais um pouco e a cabeça do baita ia aparecer.
E finalmente apareceu, ainda mais escuro do que aquele rio. O velho pneu estava bem fisgado. Beto sentiu os joelhos dobrarem e sentou-se, desolado. Ficou olhando para o rio, vendo os detritos na superfície levados pela correnteza. E o que não era visto?
Sabe Deus o que ia aos roldões nas águas profundas, iguais àquele velho pneu!
– Pobre rio – murmurou Beto, procurando compreender. – Morrendo faz tanto tempo e ninguém fazendo nada para salvá-lo.
E jurou que não usaria mais o estilingue naqueles alvos letais. Ação contínua, ele levantou-se e começou a recolher os detritos presos à margem, surpreendendo-se com a quantidade de lixo retirado do rio moribundo, em poucos minutos.
– Conte comigo, rio! – acabou gritando. – Vou salvá-lo!
Uma promessa e tanto. Beto foi construindo um pequeno dique com tábuas velhas na beira do rio, sem ninguém entender aonde ele queria chegar. Quando o dique começou a reter o lixo da superfície, todos entenderam… Mas, nem por isso, alguém ajudou. Beto ia fazendo a coleta diária e aumentando o monte de lixo longe do rio, o pai observando e dizendo:
– Isso não é trabalho para uma só pessoa, filho! Jamais conseguirás tirar todo o lixo do rio.
– Se cada um fizer sua parte, a gente salva o rio – respondeu ele, seguro de si.
O pai sorriu e estufou o peito, cheio de orgulho.
– Pois acabas de conseguir o primeiro aliado!
A operação “Salve o Nosso Rio” estava lançada. Beto e seu pai, munidos de esperança, começaram a visitar os vizinhos mais próximos na certeza de que a operação em cascata ao longo das duas margens seria um sucesso. O rio passaria a ser respeitado.
Nenhum despejo, nenhum lixo, nada mais voltaria a ser jogado no rio. Era uma boa ideia e estavam todos de acordo, só não entendiam porque haviam sido procurados.
– Nunca joguei nada no rio – disse um.
– Bateram na porta errada – comentou outro.
– Isso é problema da Prefeitura – concluiu o terceiro.
– Vocês são catadores de papéis?… Que catem papéis!
E aquela mancha escura aparecendo ao longo dos anos iria continuar, sem que ninguém fizesse nada para limpar o rio. A operação “Salve o Nosso Rio” acabou ficando apenas como uma boa ideia. Beto foi para a beira do rio, numa das mãos o estilingue e em cada olho uma lágrima.
– Sinto muito, rio. Você vai morrer!
Então ele a viu. Aquela mesma garça branca, tentando pousar. A margem estava tão poluída que ela bateu asas e alçou voo, para não mais voltar. Beto olhou para o monte de lixo que havia retirado do rio e se encheu de coragem. Pegou o carrinho de carregar papel e começou a enchê-lo até em cima com latas, garrafas plásticas e toda a sorte de detritos.
Sem nada avisar ao pai, Beto conduziu o carrinho pelas ruas da cidade até a praça central. Ali, na parte descampada, entre as flores, despejou toda a carga ante os olhares perplexos. Um escândalo!
As autoridades… A imprensa… O povo… Todos contra o catador de papéis. E Beto se defendeu:
– O rio não é diferente da praça. Ele tem o mesmo direito de estar limpo, de recusar que lhe depositem lixo e despejos. Tem o mesmo direito de ser cuidado, de ser admirado. Tem o mesmo direito de continuar vivendo, porque antes da cidade existir, ele já existia!
Sim, eu tinha doze anos quando isso aconteceu e me orgulho de ter sido catador de papéis. Ainda moro no lado do rio e, hoje, meu filho tem a idade que eu tinha.
Beto se aproxima do filho, na beira do rio de águas claras. Ao lado dele, alguns peixes garantindo o bom almoço. Na outra margem, um bando alegre de garças brancas.
– No meu tempo, quando eu tinha a tua idade, não havia peixes neste rio. Apenas latas e garrafas plásticas que eu usava como alvos de meu estilingue.
– Está brincando, pai?