O cheiro do Outro (David)

O cheiro do Outro 
David Gonçalves
Havia acontecido. Simplesmente acontecido.
O telefone tocou na hora em que ele estava preparando um drinque, passava das oito horas da noite. Estava para beber, levantara o copo, parou, escutou, e abaixou o copo. Foi atender o telefone.
– Alô, aqui é o Toríbio.
– Toríbio – disse ela, agitada. – O que você está fazendo? Como foi o dia?
– Nada – disse ele. – Oi, Vitória. Por que está demorando tanto? Pensei que ia te encontrar em casa.
– Aconteceu algo. Tem uma festinha aqui no escritório. O patrão, sabe, o Godofredo, está convidando você.
– Tô cansado. O dia foi cacete. Acho melhor eu ficar em casa.
– O Godofredo insiste: Fala pro maridão dar um pulo aqui no escritório, só pra tomar uma bebida com a gente. Tira ele daquele mundo cão, onde o crime impera, lá só tem desgraça. O Godofredo gosta de você. Ele te elogia muito. Toríbio?
– Estou ouvindo.
O Godofredo atuava no ramo de construção civil, concreto, cifras, paredes, torres, arranha-céus, e a Vitória trabalhava com ele, no escritório, organizando a papelada de compras e vendas e financiamentos. Arre, uma confusão de documentos, taxas, detalhes jurídicos, clientes impacientes, revoltados, outros ansiosos, tudo pra hoje, dizia ela quando chegava em casa, exausta, enxugada, até pálida. A empresa está a mil e os funcionários os mesmos. Havia muito serviço. Quase sempre ela chegava tarde.
Mas o serviço de Toríbio era deprimente: investigador policial. O dia todo atrás de pistas, cheirando carniças. Crimes hediondos, drogas, narcotráfico, os poderosos não se contentavam com pouco, sedentos, e os crimes se sucediam, até parecia que Toríbio se afundava no mesmo saco da perdição. Se ganhasse o suficiente, não deixaria Vitória se matar naquele escritório.
– Agora, sinceramente, não estou disposto. Quero descansar. Rodopiei como peru bêbado e nada consegui. A cada dia, e sinto impotente, diante dos crimes absurdos, e o motivo é a ambição desmedida…
Ela começou a dizer, como se não o ouvisse: Sabe, amor, hoje batemos a meta. O Godofredo resolveu fazer este happening, happy-hour, improvisado. Ah, deixa eu te contar. Também, houve uma notícia triste. Lembra do Fernando? Aquele que escrevia poesias e trabalhava aqui no escritório. Acho que era gay. O Godofredo diz que todo mundo que escreve poesia é veado. Ele ajudava a fazer as atas dos condomínios, tinha uma letra bonita, quase desenhada. Era um amor de guri. Você conheceu ele, sim. Lembra? Veio a notícia hoje de manhã: ele se suicidou. Rebentou a boca. Dá pra imaginar? Um jovem tão delicado, fazia poesia. Uma tristeza pesou no escritório. Foi uma manhã muito difícil, até parecia que os urubus do mundo tinham pousado no teto. O Godofredo mandou entregar uma coroa bonita de flores no velório. Disse, nervoso: Vitória, vê uma coroa de flores, a mais bonita, e manda pra lá. Eu comprei. Precisa ver que coroa tão bonita. Parece que foi algo enviado por Deus. Depois disso, de tarde, as vendas dispararam. Então Godofredo inventou esta festinha, entende? Toríbio?
– Estou ouvindo.
Segurava o copo de uísque na mão e na outra o telefone. O gelo derretera, e o uísque perdera o tom dourado. Tentou lembrar do poeta: rapazote alto, magro, curvado, óculos de aro de metal. Tinha olhar triste e andar de quem sempre está pisando em brasas. Deu um tiro na boca. Mas que infeliz. Ficou imaginando o disparo bruto, seco, o sangue espirrando misturado com miolos. Por que ela estava contando isto? Pra justificar a festinha no escritório? Que artimanha?
– Venha aqui pro escritório. O Godofredo insiste. Querido, você está bem? Parece que perdeu a voz. Está todo mundo numa boa, alto astral, ninguém sequer se lembra do Fernando. A vida é movimento. Você sempre diz isto, não diz? O Godofredo pediu a um amigo pra trazer o violão. Vai ter cantoria.
Toríbio ouvia a movimentação e os risos ao fundo do telefone. Não quero sair de casa, estou cansado, o dia foi difícil. Vitória?
Houve um vazio. Só o movimento das pessoas e risos. Alguém começou a tocar um bolero.
– O quê? O músico chegou. Está ouvindo? Adoro este bolero. Todo mundo vai ficar decepcionado se você não aparecer.
Ele resolveu ir. Mesmo com o telefone no ouvido, bebeu o uísque de um golpe só.
– Eu vou.
– Assim que se fala, amor. O Godofredo vai ficar contente.
Vitória estava vivendo feliz naquele emprego. Conseguira boas promoções. Trabalhava como secretária executiva. Pelo menos uma vez por semana, tinha que acompanhar Godofredo em algum prédio em construção.
Quando chegou ao escritório, todos riam e conversavam e cantavam. Sentiu-se à margem da história.
– Olha quem chegou! – Godofredo veio abraçá-lo. – O nosso investigador! Quanto tempo, hem!
Vitória o abraçou e beijou-o. Estava com gosto de vodka na boca. Mas havia outro perfume. Não era o que ela usava. Mas deixou-se levar pela animação. O álcool dopou-lhe os sentidos.
– Não queria vir, não é! Olha o que estaria perdendo – dizia-lhe Godofredo, as bochechas rosadas e o bigode dançando sobre os lábios risonhos. – Mire e veja: somos uma família de vencedores. Nem terminamos o mês e já batemos as metas. Esta Vitória é um prêmio. Sorte tua ter uma mulher assim – e voltou a abraçar Toríbio, efusivo.
Logo a seguir, Vitória o abraçou, carinhosa, e o beijou, e novamente ele sentiu o cheiro de Godofredo na boca dela, nas orelhas e no pescoço. Havia algo que ele tentava descobrir.
Sim, o mundo palpitava de emoções, ninguém se lembrava do poeta suicida. Havia tantos picos a serem conquistados, e eles estavam destinados a conquistá-los, porque simplesmente ele podiam, não se rastejavam, não se entregavam às sequelas da vida – discursava Godofredo, um tanto grogue.
Toríbio sentia-se tomado por uma leve tristeza.
– É tarde, Vitória, amanhã terei um dia de cão. Vamos embora.
Ela não queria ir, mas cedeu. Conversaram pouco durante o retorno. Ela se dizia cansada, exausta, não via a hora de cair na cama e se apagar.
Em casa, ele a abraçou e a beijou demoradamente.
– Ah, te quero tanto – ele disse. – Me sinto incontrolado.
Rolaram pela cama e ele a beijou inteira. Da cabeça aos pés. Por todo o corpo, havia o cheiro de Godofredo. Assim mesmo, ele a possuiu, enraivecido.
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