O conto do aumente um ponto

Uma catástrofe! Uma verdadeira catástrofe. Aquilo não podia ser verdade, não podia estar acontecendo. Depois de tantos anos lutando pelo povo, para o povo e com o povo, ser apunhalado pelas costas desta forma. Era o prenúncio de dias horríveis que iriam lhe afetar e à sua família. Era o fim dos tempos. Logo ele, deputado federal mais votado de sua região, quase uma unanimidade em sua cidade, ser repreendido por aquela votação. Não acreditava no que via no painel da Câmara dos Deputados. Não! Não! Um deputado, já recebido inclusive pelo Sr. Presidente da República, ter que ser humilhado desse jeito.

– Deputado Jesuíno!

Não sabia o que fazer. Sequer precisaria falar para sua mulher, filhos, genro e nora. Estava em todos os noticiários, não só de nosso querido país, mas da América Latina. Claro, era uma notícia estarrecedora, inédita e catastrófica. Mas reconheça-se: era uma boa notícia. E mídia é tudo que um político quer… mas não anti-mídia. Não aquela determinação legal que lhe impunha, de agora em diante, a si e seus familiares, utilizar o serviço público de saúde enquanto político eleito por voto popular. Era o fim dos tempos.

– Deputado Jesuíno! Deputado Jesuíno Policarpo da Silva, seu voto, por favor.

Era o Presidente da Câmara dos Deputados, berrando-lhe ao microfone da Casa para que expusesse seu voto, público, acerca do assunto que, no voto anterior, tinha-se sagrado maioria.

Ora, que diferença faria seu voto agora? A maioria já estava comemorando, aos berros, a vitória. Aliás, mais uma invencionice de grupos midiáticos anti-republicanos, essa história de voto aberto. Em sua gloriosa época, quando adentrou por aqueles salões do Congresso Nacional pela primeira vez, há tantas décadas, o voto secreto era garantia de abastados acordos, longas conversas e festas regadas a muito champanhe e, por que não, companhias agradáveis.

– Sim, Senhor Presidente – limitou-se a dizer.

Agora que a causa estava perdida, tinha que render-se à maioria e votar a favor – só de pensar causava-lhe calafrios – do uso do serviço público de saúde. Ficava melhor para sua imagem, obviamente. Conveniência e oportunidade.

A votação seguiu-se mais por imposição regimental do que por vontade dos nobres colegas, que entreolhavam-se abismados como a oposição – sempre ela, golpista! – conseguira tal feito. Ora, o feitiço também iria virar-se contra eles, não havia lógica alguma no que tinham feito. Ah, mas iriam se arrepender, pois certamente o Senhor Presidente iria vetar essa ideia apoteótica da mídia elitista em conjunto com a oposição golpista.

– Declaro encerrada a votação – sentenciou o Presidente da Mesa Diretora.

Não havia mais o que ser feito ali. Pelo menos ali, mas não no Executivo. O Senhor Presidente. O nosso parceiro até no futebol. Ele vetaria essa lei esdrúxula, que só não o obrigava por questões de segurança, mas que quase – e quase mesmo – a oposição impunha-lhe também tal obrigação.

Saíra desolado do Plenário. Seu andar, já ofegante pela enorme barriga de tanta lagosta e tanto champanhe que colocara para dentro daquele corpanzil, era de um senhor que se encaminhava para a aposentadoria definitiva, saindo do cenário nacional como derrotado, já que aquela votação o fez pensar até mesmo na saída à francesa da vida pública.

Um trecho da música-tema de sua vida veio-lhe à mente: “… não pense que a cabeça aguenta se você parar…”, dizia Raul. Não pararia enquanto Deus não o chamasse. Envolto em pensamentos, foi interrompido com uma pergunta:

– Deputado Jesuíno Policarpo, tudo bem? Pode dar uma entrevista para o Jornal Oficial?

Era uma boa oportunidade de se redimir frente à mídia e seus eleitores. O canal oficial de TV do governo era pouco visto, mas sempre muito comentado pelos outros canais. Sabia que o que falaria ali seria repercutido, já que era o líder do governo na Câmara dos Deputados e representava os interesses do Senhor Presidente.

– Mas é claro, sempre sou solícito com vocês, minha querida. Ainda mais hoje, depois de um passo tão importante para a democracia…

A entrevista iniciou-se com o microfone a postos pela bela e jovem repórter de corpo violinil, que aliava à inteligência o convite para o pecado. A básica pergunta exordial era sobre a opinião do entrevistado sobre o que acabara de ocorrer, ou seja, o básico de sempre:

– A votação de hoje representa um marco na história do nosso país. A obrigação, imposta pela população, de que todo político eleito seja obrigado – veja, obrigado – a utilizar-se do serviço público de saúde constitui-se na representação do mais elementar princípio da nossa Carta Constitucional, que é o princípio que diz que todos são iguais perante a lei. E digo mais, não só os deputados, senadores, vereadores, prefeitos, governadores, etc., vão usar o SUS, mas também seus familiares, aí entendendo-se o cônjuge, filhos, noras e genros.

– Como o Senado já tinha votado a mesma matéria e por lá também passou, como aqui, agora vai para sanção presidencial. O senhor acha que o Presidente vai sancionar essa lei? Não se corre o risco de haver um veto presidencial?

Vendo toda aquela multidão ao seu redor, que há tempos não estava o Congresso tão lotado e com tanta força popular, o nacionalista católico Jesuíno desconversou:

– Veja bem. A sanção presidencial é um ato único e exclusivo do Presidente da República. Cabe somente a ele, que tem esse poder legitimado pelo voto popular, sancionar ou vetar qualquer lei que o Congresso Nacional aprove. Um projeto desses, com forte apoio popular, comprovando que nossas instituições funcionam, que o país sobe mais um degrau rumo ao primeiro mundo, que superamos até mesmo países que já se declaram de primeiro mundo, é um marco não só no Brasil, mas um marco mundial. Mas repito, cabe somente ao Presidente essa prerrogativa.

– Mas então por que a base aliada do governo, liderada pelo senhor, foi contrária ao projeto?

– Ora, havia inconsistências com que não concordávamos e ainda não concordamos. Achamos que o projeto deveria ser mais bem discutido…

– Mesmo estando há mais de vinte anos na Câmara e sendo aprovado pelo Senado após o retorno do mesmo? – rapidamente interrompeu a repórter.

– Pois é, exatamente por isso. Mandamos um projeto para o Senado, que alterou o projeto original e aí é que não concordamos – rebateu o deputado.

– Mas o projeto original foi alterado pelo Senado apenas para retirar essa obrigação para o Presidente da República e seus familiares, por questões de segurança nacional… – observou novamente a repórter.

Dois assessores rapidamente interromperam a conversa, iniciando um sutil empurrão que conduziria o deputado para seu gabinete, ainda respondendo:

– Iremos analisar essa questão, não se preocupe. O governo está empenhado em formar um Estado justo e democrático, mais republicano…

E assim, tal qual uma noiva apressada em percorrer o longo corredor entre a solteirice e o matrimônio, foi conduzido que o deputado passou pelo infinito corredor que levava a seu gabinete, cercado de assessores e seguranças.

Entrou já com a porta aberta por um assessor, perguntou à secretária se havia alguém ali além da “turma” e, à resposta negativa, bateu a porta e não se segurou:

– Povo burro! Povo nojento! Oposição golpista! Cambada de traidores! Traidores! Golpistas! Não tem o mínimo de compaixão, o mínimo de gratidão por tudo o que fazemos por eles… que ódio, que ódio! Imagina eu, um deputado federal, uma autoridade, ir para o mesmo hospital que todos os outros. Como se meu mandado fosse um lixo, se não valesse nada!

– Calma, deputado, calma. O Senhor Presidente vai vetar, é o que toda a imprensa já está falando. Essa lei não tem a mínima condição de passar – disse um dos funcionários do gabinete.

– Pois é, é o que eu espero, é o que eu espero.

– Doutor, tem vários recados chegando e muita assessoria ligando, querendo falar com o senhor. Todos deputados, alguns políticos de fora, como vereadores e prefeitos do nosso estado – avisou a secretária.

– Diga o de sempre: para os prefeitos e vereadores, diga que estou em reunião com deputados. Para os deputados, diga que estou com prefeitos e vereadores. Se for o governador, me passa… mas ele está na Europa, se for ligar vai ser no meu celular.

E assim entrou em sua sala, desconcertado, raivoso, indignado. Mal sentou na cadeira e um café com bolachas já adentrava sua sala, vindo na bandeja da estagiária, uma pequena de dezoito anos com seios fartos e quadril formando-se, a atormentar seus pensamentos. Como é bonita a juventude, pensou. Mal pensava na juventude e a velhice lhe interrompia os pensamentos. Era sua esposa ao telefone. Limitou-se a dizer:

– Oi…

– Seu burro! Seu incompetente! Que desastre! Como você deixou isso acontecer? Você já imaginou nossa filha na fila do SUS? Já imaginou nosso filho, Júnior, pegando senha de madrugada?! Nossos netos… meu Deus, que desastre. Nossos netos não poderiam ter vindo em hora pior… meu Deus, que coisa! Imagina aqueles anjinhos agora, tendo que aguardar um exame no calor daquele hospital que mais parece um sanatório, um purgatório melhor dizendo. Mas olhe, Jesuíno, escute bem o que vou te falar, escute porque só vou dizer uma única vez: trate de mudar isso, trate de dar um jeito. Você sempre deu um jeito, sempre soube dar um jeito, então agora você vai dar um jeito, porque não vou agora, no final da minha vida, usar o SUS, nem eu e nem meus filhos e muito menos nossos netos! Você trate de fazer com que isso não seja aprovado pelo… pelo… bom, você sabe quem porque não posso falar no telefone, mas isso não pode acontecer! Ok? Estamos enten-didos? Estamos?

– …

– Jesuíííno!

– Sim, meu bem… vou dar um jeito.

– É bom mesmo – e desligou na cara do nosso político.

Só lhe restava sair dali e ir tomar um whisky com gelo, em casa. Era o que faria. Berrou, de porta fechada mesmo, para que lhe aprontassem o carro que iria sair. Ser líder do governo tinha lá suas vantagens.

Munido de dois assessores e alguns seguranças, saiu por uma porta salvadora prontamente instalada – talvez para ele, mas desconfiava que era somente para líderes do governo e entendia a razão – para não passar pelos corredores e encontrar a imprensa elitista.

Sentando no banco traseiro do sedã escuro, de vidros mais ainda, no meio dos assessores que não paravam de falar ao telefone tentando conter o fogo tal qual o corpo de bombeiros tentava conter o incêndio no Joelma, perdeu-se em pensamentos. Quando viu, entrava no apartamento e deixavam-no ali seus assessores. Ligaria caso precisasse, sim.

– OK, podem ir embora. Vão. Deixem-me só. Obrigado – limitou-se a dizer.

O bonachão de corpo grande estava cansado. Caiu na poltrona como quem se joga ao abismo prenunciado do suicídio. O conforto lhe massageava a alma. Pegou a garrafa de uísque que sempre ficava à mesa de canto e o copo e inseriu o de sempre. Faltava o gelo, mas era um detalhe agora. O gole lavou-lhe a alma. Repetiu o gesto mais algumas vezes. Dormiu ali mesmo.

A sexta-feira amanheceu ensolarada na capital. Já passava das nove horas e estava na cama, ainda de terno. Não tinha a mínima ideia de como foi parar lá, mas estava sem os sapatos, sinal que alguém o ajudara. Bêbado, nunca tiraria os sapatos voluntariamente.

– Bom dia, meu amor… achei que tinha virado a Bela Adormecida!

Era Paola. Se é que era, pois duvidava se seu nome era realmente esse. Mas quem se importava, num mundo em que nada parecia real? Sempre tão bela, tão estonteante, cheirosa, arrumada. Só a via assim. Sempre. “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem…”, pensou. “Ah, Millôr… fazes falta”. Sentou-se na cama.

– Nossa, cheguei aqui ontem e você estava num estado lastimável… vi o que aconteceu pelos jornais e achei que quisesse um afago meu – veio Paola recostando-se no corpanzil um tanto quanto rechonchudo do deputado, sentando atrás do mesmo e iniciando-lhe uma massagem nas costas.

Lembrou-se de ontem. Da votação. Da catástrofe. Da mulher berrando ao telefone. Esqueceu da mulher. Lembrou novamente da votação. Da fila do SUS. Da catástrofe. Sentiu sua roupa sendo tirada aos poucos, pelas mãos profissionais de Paola, uma massagista que vinha de Balneário Camboriú, lá no Sul, cidade que, depois de conhecer, pensava ser “o Facebook da vida real”, onde todos são lindos e ricos. Bobagem, mas que tinha um fundo de verdade.

– Agora não…

– Agora sim, meu amor – disse Paola, que sabia como ninguém lhe recuperar as energias, após esgotá-las como uma bateria que quanto menos carga possui, mais se recarrega.

– …!

Como não havia votação naquele dia, aguardaria ser chamado para a reunião com o Senhor Presidente ou algum ministro por ele mandado, para discutir sobre o veto, o que iriam dizer à imprensa, qual a justificativa do veto, etc. Não havia motivos para pânico, a lei não seria sancionada e, assim, caberia apenas algumas palavras que, em uma ou duas semanas, tudo já seria esquecido.

– O povo tem memória curta… – disse para si mesmo, baixinho.

Paola já tinha ido embora, pois tinha que bater o cartão na

Câmara, para não desconfiarem que não trabalhava lá, então estava sozinho no apartamento. O celular tocava de vez em quando, mas não atendia, ou porque não havia identificação, ou porque havia e eram os chatos de sempre: políticos. Apesar de ser um deles, detestava políticos. Eram muito pedinchões. Adormeceu.

Acordou com a campainha discreta do almoço servido. Levantou-se e abriu a porta, ajeitando os cabelos e envolvendo-se no roupão marroquino que ganhara de presente de um empresário qualquer.

Comeu como um rei. Bebeu como um czar. Cotidiano.

Adormeceu novamente.

– Sr. Deputado! Sr. Deputado! – bradavam à porta. Os berros iniciaram baixos em seu ouvido e foram aumentando à medida que recobrava a consciência. Reconheceu seus assessores. Eram eles, chamando-o da porta de seu apartamento.

Pediu a eles um tempo aos mesmos, pois precisava se recompor e, apesar de já o terem visto de todas as formas, a intimidade é algo que deve ser preservado. Foi ao banheiro, recompusera-se da bebedeira, do sono e das vestes marroquinas, lavando o rosto para tomar mais consciência. Vinha chumbo grosso. Sabia que não o interromperiam por qualquer coisa numa sexta-feira a tarde, pessoalmente, em seu apartamento.

Olhou no telefone. Sessenta e quatro ligações perdidas. Havia algo errado e queria estar pronto para receber a notícia e prontamente sair atrás da solução. Abriu a porta.

– Sr. Deputado, desculpe lhe interromper, mas é que…

– Entrem, entrem – mandou.

Sentaram-se já falando, sem ao menos serem autorizados.

– Ligamos para o senhor, insistentemente. Várias vezes, mas o senhor não atendia. Achamos que estava no modo silencioso – o que o deputado assentiu com a cabeça – e resolvemos vir até aqui. O Sr. Presidente. Ele…

– O que tem ele?

Os dois assessores entreolharam-se e um deles tomou coragem, respirou fundo e falou:

– Ele sancionou.

– Sancionou o que?

– A lei, Sr. Deputado. A lei! Aquela…

– Aquela?  Do SUS? Dos políticos? – gaguejou o deputado.

– Sim, Sr. Deputado, aquela.

Não podia entender. Não compreendia, na verdade. Passaram-se apenas vinte e quatro horas, não havia urgência. Por que a pressa? Não havia motivos, não havia razão. Não! Sequer fora chamado ao Planalto, sequer fora consultado… só podia ser um ato de publicidade do Senhor Presidente para alavancar sua baixíssima aprovação nacional. Oportunismo. Somente oportunismo, pois não o atingia, somente os outros políticos…

– E nomearam o Natalino Bezerra como líder.

Um murro forte e seco estourou na mesa de madeira nobre. Não podia ser, era traição demais! Ele, Deputado Federal Jesuíno Policarpo da Silva, uma autoridade, um nacionalista, católico fervoroso, fiel aos interesses do governo, ser passado para trás dessa maneira sórdida.

Mandou os assessores embora. Vestiu-se de terno e gravata, elegantemente, mandando o porteiro avisar o motorista para pegá-lo em cinco minutos. Desceu pelo elevador sem olhar para quem quer que fosse, funcionário, outros deputados, qualquer um. Estava determinado. Iria ter com o governo, com o Presidente se preciso fosse. Mas ia saber daquela história e era já.

Chegou à portaria do prédio e nada do motorista. Ora, mas que desaforo, deixar um deputado esperando, ainda mais um líder e pior ainda, o líder do governo. Ligou para o gabinete:

– Mas que diabos! Cadê o motorista? Estou parado aqui, neste sol, e nada dele!

– É… Sr. Deputado… é que o senhor não tem mais direito a motorista exclusivo… o senhor não é mais líd… – a secretária foi interrompida pelo brusco ato do deputado, que desligou na sua cara.

Até mesmo os carros já tinham lhe tirado. Ora, que petulância do governo! Tinha que aguardar um carro oficial ter “vaga” para pegá-lo ali. Foi de táxi, era mais rápido. O motorista olhava-o pelo retrovisor, como que o reconhecendo e cheio de perguntas a lhe fazer, tal qual um repórter da imprensa golpista; mas ignorava-o, para não ter de responder nenhuma.

“… Mais fácil julgar, do que ter que olhar as próprias mentiras.” – cantava Deborah Blando no som do veículo. Pediu para desligar.

Iria ao Palácio do Planalto numa sexta-feira à tarde, que equivalia a ir ao deserto do Saara em qualquer horário. Não haveria vivalma ali, com exceção dos seguranças de praxe.

Uma pancada no carro! Forte, do lado oposto ao seu. Sentiu seu corpo balançando e gravitando e o veículo virando, num capotamento que se repetiria por mais duas vezes. Apagou.

Tempo…

A primeira sensação era de calor. Bafo quente que o fazia suar. Estava recobrando a consciência quando, longe, ouvia pessoas sussurrando que ele estava abrindo os olhos. Sentia seu corpo agora, sentia que podia se mexer. Braços, pernas, dedos… tudo estava ali, funcionando. Que bom, pensou. Estou me mexendo pelo menos. Lembrou-se vagamente do acidente. Sim, estava num táxi e bateram. Bom, estava num hospital, era óbvio. Via pessoas a sua frente. Vultos na verdade. Amontoavam-se para vê-lo ali, naquela cama de hospital. Por que estava tão quente? Iria reclamar, era só recobrar as energias que iria ter com o responsável. Era um absurdo sentir tanto calor, ainda mais ele, um já senhor de corpo acima do peso e, ainda mais, uma autoridade.

– Oi, meu amor… – foi a primeira vez que teve prazer ao escutar aquilo. Era Paola. “Ah, doce Paola, que bom que estás aqui, nesta hora.”

– Meu amor, me reconhece? As crianças estão aqui também –

disse uma mulher de bastante idade, em detrimento aos seus pensamentos na outra, de metade da idade. E do peso.

Acordou, finalmente. Estava num hospital, como pensara. Público, como nunca imaginaria. Era fácil a constatação diante da cama desconfortável, das paredes sujas e pintadas provavelmente uma única vez, e há muito tempo. Claro, o calor também o fez supor tal fato.

Filhos, nora e genro estavam ali. Os netos não sabia onde estavam, provavelmente na escola. Todos o olhavam com compaixão, vendo-o sofrer ali. Recobrara a consciência tão rapidamente que logo as perguntas chegavam-lhe à mente. As respostas vinham em conta-gotas sem sequer perguntar:

– Querido, você sofreu um acidente…

– Bateu forte a cabeça, estava sem cinto…

– Ficou meses na UTI, em coma…

– Não pôde disputar outra eleição…

– Já estamos em setembro, já passou a época da candidatura…

– A lei entrou em vigor logo depois do acidente…

A lei! Ah, a lei. Aquela famigerada que lhe destruíra a vida. Agora para sempre, pois não podia mais se reeleger. Fechou os olhos e rezou, católico que era. Seu mundo caiu. Não era mais deputado, não iria ao Albert Einstein tratar-se. Nem ele nem seus familiares.

Acho que morreu, porque o próximo diálogo deu-se num plano maior:

– Seja bem-vindo, Jesuíno. Você foi político a vida inteira, trabalhou pouco pelos pobres. Da pobreza veio e para a riqueza foi. Não foi honrado, não foi honesto, não foi nada do que falava. Não fez nada do que pregava. E mesmo assim rezou.

– Mas, Senhor! Eu direi uma só palavra e serei salvo…

A sequência do diálogo cabe somente ao leitor imaginar. Muitos finais existiriam para a história. Dentre eles, a remissão ou a vingança. A estória, lá embaixo ou lá em cima, dependendo para onde foi nosso nobre deputado, é uma premonição do que ainda há de vir neste país. Uma catástrofe, sim, mas para poucos. Ou seria igualar a catástrofe já existente na saúde pública à classe política? O final é só seu, caro leitor.

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