O magnífica discurso (Hilton)

O MAGNÍFICO DISCURSO (Sátira)

Hilton Gorresen

Quando Genecildo subiu ao palanque, o locutor pediu silêncio e anunciou o começo da grande e vitoriosa jornada:

– E agora, com vocês, este cidadão brilhante, dedicado ao seu povo e à sua terra, a terra onde nasceu – o futuro vereador (pausa para as palmas) Genecildo Bonifrates.  Sentiu um arrepio pelo corpo. Parecia flutuar sobre as palmas e gritos: ele,  o Genecildo de todo dia, simples funcionário do estado, inveterado jogador de dominó e palitos.

Tudo começou com uma indicação dos chefes políticos de Tequiné (refiro-me ao município de Tequiné dos Pombos). Candidato a vereador: já era o começo de um sonho. Tinha certa popularidade, por que não? Fazia parte da Congregação dos Marianos, era quem cantava as pedras do bingo nos festejos da igreja; no meio da barraca de bingo, acenava para as pessoas, com o prêmio da rodada na mão: toalhinhas de mesa, garrafão de vinho Sangue de Boi,  lindos rosários, bolos de chocolate feitos pelas zelosas beatas. Nas celebrações de Sexta-feira Santa, era um dos que levava nas costas, com uma bata vermelha e branca sobre o corpo, o andor do Corpo de Cristo. Isso não contava?

Chegou em casa, naquele dia, com a expressão de mistério que sempre adotava, antes de largar de supetão a boa notícia. A mulher já se acostumara, pensou: lá vem coisa. Gostou. Mulher de autoridade, que esnobada nas amigas e, principalmente, nas vizinhas fofoqueiras.

Em casa, brincadeira ou estímulo, começaram a tratá-lo de Excelência, para ir se acostumando ao gostinho do título (somente a empregada, a negra Tertúlia, não entendeu por que o nome do seu Cido mudou de repente para seu Encelença). Horas na frente do espelho. Treinava a mímica que o ajudaria a plantar os fundilhos na cadeira dos edis; sorria esticando o queixo, para mostrar a dentadura de baixo; franzia as sobrancelhas, deixando um sulco de preocupação na testa, que dava um ar de responsabilidade.

Não pretendia – e nem podia – gastar muito em sua campanha eleitoral, apenas o necessário para algumas cédulas, balas para a criançada, uma cachacinha para os compadres, coisa compatível com seu modesto rendimento.

Sabia que o decisivo mesmo seria o magistral comício planejado pelo partido para dali a um mês, na praça da igreja, com a presença dos líderes estaduais. Aí as coisas começariam a se definir, a esquentar. Dia de comício, em Tequiné, era dia de festa, o povão todo saía à rua. Claro, seria necessário um discurso à altura, capaz de conquistar de modo indiscutível o voto de seus concidadãos.

Para isso, Genecildo até que havia dado trato às bolas: como começar? Onde encaixar todos os seus atributos e qualidades (algumas, descobertas recentemente pelos costumeiros correligionários)? Como deixar escapar alguns fatos desabonadores contra os adversários? Mas o importante mesmo, para deixar o pessoal de boca aberta, seria embrulhar esse conteúdo desgastado numa embalagem rica, atada com floreios gongóricos e termos ofegantes (esta terra tripudiada e esquecida…). Em Tequiné, seja dita a verdade, o povo considera capazes os que falam coisas que ele (o povo) não consegue entender.

É claro que não conseguiu dar tamanha altitude ao seu planejado discurso: depois de perder horas sentado diante de uma escrivaninha, cigarro pendente na boca, conseguiu alinhavar, quando muito, um palavreado chulo, alguns chavões, sem respeito à concordância e à ortografia. Como conseguir o respeito dos eleitores desse modo, manejando o léxico e a sintaxe só de ouvido? Não era muito afeito a leituras. Gostava, sim, de um bom “manual” de anedotas.

Assim só lhe restou uma saída: encomendar o discurso ao professor Aristomásio, a maior capacidade de Tequiné dos Pombos. O professor estava naquela idade em que sempre esquecia onde colocou os óculos, era leitor dos discursos de Rui Barbosa e da obra de Coelho Neto.

Consciente profissional que era, fez anotações, consultou as preferências morfológicas e semânticas do cliente (em matéria de adjetivações, apraz-lhe mais “gorgôneo” ou “formidoloso”?), apalpou as possibilidades do tom oratório (o nobre postulante optaria pela encomiástica solerte ou pela feroz catilinária?), revirou os clássicos de sua estante à procura de citações, e em menos de duas semanas largou a encomenda, que veio uma maravilha. Sete páginas, pelo menos. Arrebatava pela pujança dos termos, pelo exótico das construções. Só mesmo um mestre para tecer tão belo cipoal… Até um tal de Nietzsche foi citado. Ah! O povo ia delirar de incompreensão!

Não é de admirar, portanto, que trechos do discurso tenham rolado nas mesas de dominó, no Bar Rodoviário (onde Genecildo fazia ponto), entre uma cerveja e outra, no mais puro sacrilégio. O carteiro Valtinho, seu parceiro de jogo, comentava excitadíssimo para os demais frequentadores do bar:

– Repara só no português do home! Já tá eleito. Lê de novo aquela parte do “qual tremebundo do Nestor”.

– …furibundo Adamastor! – consertava Genecildo paciente. E olhando ao redor, orgulhoso, para ver se todos estavam atentos, explicava: Adamastor é um baita dum caboclo, que tá nos versos do Camões.

– Isto mesmo! Linda essa parte. É o que eu digo: já tá eleito, parceiro.

Foi quando chegou o grande dia. Era domingo. O comício estava marcado para depois da missa das nove da manhã. Genecildo não conseguiu decorar todo o discurso, quem conseguiria? Eram palavras que se enviesavam, desacostumadas em sua boca inculta, como objeto estranho. Era como estivesse no comando de uma aeronave desgovernada. Mas isso não era problema: o senhor Prefeito, em seus pronunciamentos, não saca o “improviso” do bolso? Era o que ele também faria.

Nervoso, despachou o embrulho de alcatra pela cozinheira (estava no açougue do Zé Quindim, um pouco antes do horário previsto para a grande jornada). Tirara o terno de casamento da naftalina, o sagrado texto dobradinho no bolso do paletó.

Mas não contava com os tradicionais galhofeiros da cidade, aqueles que se pelavam por uma boa sacanagem aos amigos e não amigos. Os espíritos de porco. E ali estava por coincidência o Zé Corneta, famoso por  suas extravagantes brincadeiras. Enquanto Genecildo se distraía escolhendo a peça principal do cardápio do dia, o Zé, de mansinho, surrupiou o papel de seu bolso.

O candidato ajeitou a gravata, limpou a garganta com uma tossezinha e seguiu gélido para o palanque.

Na praça, o povo se acotovelava, na expectativa. Era um mundéu de gente, alguns  saídos da missa; outros, movidos pela excitação e curiosidade em acompanhar a apresentação dos candidatos. Só de olhar, dava um friozinho na barriga. No palanque, uma banda animava o povo com uma alegre e movimentada marchinha.

Figura de menor expressão entre os representantes do partido, Genecildo seria o primeiro a discursar. Esperou parar a música da bandinha. Depois, as palavras do apresentador. Elevou-se, trêmulo, pisando, como era baixinho, num pequeno caixão que seria, se Deus quisesse, seu pedestal provisório. Deu uma encarada no povaréu, puxou a gravata, pigarreou.

Quando enfiou a mão no bolso do paletó, não encontrou nada. Esfriou. Com os olhos vasculhou o chão, não tivesse o danado do papel caído por descuido. Nada. Pálido, diante do aterrador bafo da multidão que esperava suas palavras, Genecildo não conseguia falar nada. Engasgou, tossiu. Não tinha mais chão. Os chefes políticos o encaravam. Escondeu o rosto nas mãos e desceu rápido do palanque, sumindo entre o povo. A candidatura, ó, foi pro espaço. Que pena, o discurso era magnífico.

 

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