O nascimento de Jesus Cristo (Milton)

O NASCIMENTO DE JESUS CRISTO

MILTON MACIEL

Realizado em 312 AD, no império de Constantino, o concílio de Niceia, a que me referi linhas atrás, serviu para estabelecer como dogma a divindade de Cristo. Contudo, não houve unanimidade entre os bispos a respeito da forma como essa divindade seria definida. Então os vencedores (“aos vencedores as batatas” – sempre!) acusaram os vencidos (que tinham a liderança de Ário, bispo de Antióquia) de hereges – a heresia do Arianismo. Isso causou o primeiro grande cisma na igreja em consolidação, levando, com o tempo, à formação de duas assembleias universais de apóstolos, uma com base em Roma, subordinada ao papa, e outra, ortodoxa, subordinada ao patriarca de Constantinopla. Usando as palavras gregas:  Assembleia = Igreja; Universal = Católica; o resultado foi uma Igreja Católica Apostólica Romana e uma Igreja Católica Apostólica Ortodoxa. Lembrando que ortodoxa é a parte que não aceita inovação.

Alguns séculos durou a encrenca que se estabeleceu entre os dois grupos religiosos, à medida que, após a divisão do império romano em dois, em 395, os imperadores romanos do Ocidente (Roma) e Oriente (Constantinopla) souberam explorar os ânimos acirrados, estimulando lutas fratricidas, assassinatos e, como lhes convinha, grandes expropriações de bens de adeptos ricos arianistas ou romanistas. Mais de uma vez um imperador do Oriente, onde o arianismo era dominante na sociedade, converteu-se subitamente ao romanismo para poder prender, executar e tomar os bens de arianistas muito ricos, seus tranquilos e íntimos cortesãos até a noite anterior. Um imperador do ocidente fez a mesma coisa, convertendo-se ao arianismo sem qualquer aviso prévio, tornando-o oficial, punindo, expropriando e executando os romanistas ricos de…Roma.

Essas histórias – de arrepiar os cabelos – das primeiras lutas sangrentas entre católicos e católicos precederam em um milênio as que iriam acontecer no futuro entre católicos e protestantes e deixariam os meninos do IRA (Irish Republican Army) da Irlanda do Norte encabulados com a delicadeza e suavidade do seu terrorismo. Mas isso não é assunto para esta série natalina. Voltemos ao tema, portanto. Gingle bells!

Os evangelhos

Cito aqui o Concílio de Niceia porque ele serviu também para outra coisa muito útil para a Igreja: escolher quais, dentre as dezenas de evangelhos que existiam então, seriam os aceitos oficialmente pelo novo cânone estabelecido no concílio. Somente quatro desses evangelhos foram aceitos e reconhecidos como estrategicamente convenientes para a doutrina que se queria estabelecer e consolidar, os evangelhos cujas autorias foram atribuídas aos apóstolos Mateus e João e aos discípulos Marcos e Lucas – autorias que têm sido, todas elas, muito contestadas por inúmeros estudiosos contemporâneos. Todos os outros evangelhos, ao redor de setenta, foram desautorizados e considerados oficialmente apócrifos.

Vou citar apenas um dentre dezenas de possíveis exemplos, o Evangelho da Infância de Tiago, atribuído ao apóstolo Tiago Maior, filho de Zebedeu. Nele, o autor narra a concepção e a infância de Maria e seu crescimento no Templo até chegar à idade de casar, quando os sacerdotes ordenaram que todos os descendentes de David da cidade, que estivessem em condições de casar, levassem um ramo para o altar, para que Deus fizesse a escolha do noivo.

Então uma pomba pousou sobre o ramo de José, que floresceu imediatamente. Mas José recusou o noivado apavorado, objetando: “Tenho filhos e sou velho, enquanto ela é uma menina. Não quero ser sujeito a zombaria por parte dos filhos de Israel.” 

Esse evangelho apócrifo de Tiago, contudo, é aceito pela Igreja Ortodoxa, que o usa para explicar por que os evangelhos canônicos citam os irmãos (Judas, Tiago, José e Simão) e as irmãs (não nominadas) de Jesus: seriam os filhos de José, que estaria viúvo ao desposar Maria. Já o evangelho de Mateus atribui outra origem mais convencional aos irmãos de Jesus, no capítulo 1:

24.Ao acordar, José fez o que o anjo do Senhor lhe tinha ordenado e recebeu Maria como sua esposa. 25. Mas não teve relações com ela (não a “conheceu”) enquanto ela não deu à luz o filho. E ele lhe pôs o nome de Jesus.

Para grande parte das confissões protestantes atuais, isso seria a admissão que os irmãos e irmãs de Jesus poderiam ser filhos reais de Maria com José. O qual não a “conheceu” somente até que ela desse Jesus à luz. E há uma citação em Lucas I que também dá reforço a essa hipótese:

  1. Teve seu filho primogênito, e o enfaixou e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria. 

O argumento é que só seria usado o adjetivo primogênito caso Maria tivesse tido mais filhos depois. Um pouco mais adiante vamos voltar ao milenar tema machista dos deuses nascidos de virgem – há dezenas deles! Sigamos, por ora, nos evangelhos.

Com os apócrifos proscritos, sobraram apenas os quatro evangelhos aceitos pelo novo cânone de Niceia, por isso chamados desde então de evangelhos canônicos. Dentre eles, vou me basear nas informações dos evangelhos de Mateus e de Lucas para buscar dados sobre o nascimento de Jesus.

(Neste ponto faz-se necessário um parêntese importante: estou explorando esses escritos antigos procurando fatos históricos reais, sem atribuir aos textos poderes sobrenaturais de infalibilidade ou de “palavra de Deus”. Em compensação, também não lhes nego a possibilidade de estarem relatando acontecimentos verídicos. Esse campo em que vamos entrar agora exige mente muito aberta. Vou procurar indicadores reais, com apoio de dados históricos, astronômicos e científicos, longe, portanto, do igualmente respeitável campo da fé. De forma que, para quem prefere enveredar só por este último campo, reconheço-lhe a conveniência de interromper a leitura neste ponto, sem maiores prejuízos. Para todos os outros, os mais pacientes inclusive, podemos seguir em frente). 

O evangelho de Mateus 

O texto atribuído ao ex-publicano (cobrador de impostos) Mateus parece ter sido escrito bem depois de sua morte, por volta do ano 80 AD. Agostinho afirmou que este foi o primeiro a ser escrito e, por isso, ele é até hoje impresso como o primeiro dos quatro evangelhos do Novo testamento. Os estudiosos tendem, no entanto, a atribuir essa primazia ao evangelho de Marcos, que não foi um apóstolo, mas um possível discípulo do apóstolo Pedro, em cujas memórias teria se baseado.

Vejamos como o evangelho de Mateus nos apresenta o tema do nascimento de Jesus, no seu capítulo 2:

1.Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que magos vieram do Oriente a Jerusalém. “2.Perguntaram eles: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”

Aqui é estabelecido o local de nascimento: Belém, na Judeia, que está apenas a 10 km de Jerusalém, considerando as cidades atuais.

Só um outro evangelho canônico, o de Lucas, um discípulo do apóstolo Paulo, afirma que Jesus nasceu em Belém. De acordo com o Lucas 2:4, os pais de Jesus viviam em Nazaré, porém foram obrigados a viajar até Belém (dá cerca de 160 km, feitos a pé por José, puxando o burrico com Maria gravidíssima, não menos do que uns 12 a 15 dias de viagem) para o censo de 6 d.C. Com a palavra Lucas, capítulo 1:

1.Naqueles dias foi expedido um decreto de César Augusto, para que todo o mundo fosse recenseado. 2.Este foi o primeiro recenseamento que se fez no tempo em que Quirino era governador da Síria. (Esse censo de fato aconteceu, mas só no ano de 6 AD, o que configura uma grande rata de Lucas, pois Jesus teria nascido, então, somente em 6 depois de Cristo).

3.Todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. 4.José também subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de Davi, chamada Belém, por ser ele da casa e família de Davi, 5. para se alistar, acompanhado de Maria, sua esposa, que estava grávida.

6.Estando eles ali, completaram-se os dias de dar ela à luz; 7. Teve seu filho primogênito, e o enfaixou e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.

Contudo Mateus, em seu evangelho, apenas menciona o nascimento em Belém sem citar qualquer viagem prévia ou censo, como se a família já vivesse em Belém. E, como veremos logo adiante, quando o magos chegaram para a visitação, não encontraram um recém-nascido numa manjedoura (em uma estábulo ou gruta, associados a uma hospedaria), mas uma criança em uma casa.

Mateus, Cap. 2, v 11: Entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua mãe.

Estudiosos atuais acham que o erro de datação de Lucas ocorreu no afã de provar que Jesus era descendente de David e que seu nascimento em Belém cumpria a profecia de Miqueias, a qual é citada por Mateus (v 5):

  1. E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que governará Israel, meu povo” (Mq 5,1).

Mateus não faz qualquer referência a um censo. Contudo, ao dizer “no tempo de Herodes”, desautoriza Lucas e seu censo de 6 AD, pois está mais do que comprovado historicamente que Herodes, o Grande, morreu no ano 4 AC. “Logo depois de um eclipse lunar e antes da Páscoa”, segundo escreveu o historiador judeu Flavio Josefo; Um eclipse anular foi confirmado pelos astrônomos atuais como ocorrido em 13 de março de 4 AC, pouco antes da Pessach daquele ano.

Por ordem de Cesar Augusto, o reino de Herodes foi divido em três partes, que couberam a três dos muitos filhos que ele teve com sete de suas nove esposas: Arquelau, Felipe e Herodes Antipas (este é o Herodes que vai mandar decapitar João batista e ajudar na condenação de Jesus, uns 30 anos mais tarde). Pois esses três filhos datam seus respectivos reinados como tendo começado no ano de 4 AC.

Por aí se conclui que Jesus nasceu em 4 AC ou antes disso. A hipótese 4 AC seria possível com o relato de Lucas, dizendo que os magos o encontraram recém-nascido, dentro de uma manjedoura, isto é, de um cocho de estábulo. Mas no relato de Mateus, que não cita recém-nascido, mas somente menino, existe um outro problema. Está no versículo 16:

16.Vendo, então, Herodes que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irritado e mandou massacrar, em Belém e nos seus arredores, todos os meninos de dois anos para baixo, conforme o tempo exato que havia indagado dos magos.

Isso quer dizer que os magos não puderam definir a idade do menino Jesus, levando Herodes a concluir que ele poderia ter qualquer idade entre a de recém-nascido e os 2 anos de idade. Este seria o “tempo exato” citado no versículo. Ou seja, os nascidos entre 4AC e 6 AC.

Na verdade, ente 7 AC e 4 AC. Por quê? Porque uma pessoa tem 2 anos de idade até o dia do seu aniversário de 3 anos. Tal qual, hoje em dia, uma jovem mulher de 39 anos, 11 meses e 29 dias apresentar-se-ia como uma pessoa de apenas 39 anos.

Devemos, considerando Mateus, pesquisar indicadores do nascimento de Jesus entre os anos 4 e 7 AC, portanto. Já com Lucas precisaríamos considerar um recém-nascido, porém no ano de 6 depois de Cristo, durante o censo do governador da Síria Quirino. Lucas, discípulo de Paulo, que copiou Marcos e Mateus, deu uma escorregada na datação, como já vimos.

Mas é o próprio Mateus quem nos socorre agora com uma outra indicação totalmente incomum: a Estrela de Belém:

“2.Perguntaram eles: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”

Este acaba de nascer parece apontar para a hipótese do recém-nascido. Mas conclui-se, logo a seguir, que o acaba de nascer era estendido a crianças de até 2 anos (= 3 anos incompletos), ou ao conceito de nascidas há pouco tempo.

É preciso considerar que a hipótese de um recém-nascido seria válida para qualquer ano de nascimento: 4, 5, 6 ou 7 AC. Porque nada afirma que Herodes morreu logo após a visita dos magos e o pretenso massacre dos inocentes. Tanto que José levou a família para o Egito e teve que esperar por um tempo não definido até a morte de Herodes, para poder voltar para Nazaré. Jesus poderia ter nascido perfeitamente em 7 AC ou 6 AC e ser encontrado ainda como um bebê em Belém. Nesse caso, a decisão de matar todos os meninos de 0 a 2 anos teria vinda da mente reconhecidamente depressiva e psicótica de Herodes, como uma espécie de garantia para não deixar de matar o indigitado Rei dos Judeus.

Relatos históricos revisados atualmente parecem não corroborar a existência desse infanticídio tresloucado em nenhum momento dos anos finais do reino de Herodes. Por outro lado, Belém era um ajuntamento tão exíguo de pessoas que um pretenso massacre ali não poderia ter atingido mais do que uma dezena de crianças e não entraria facilmente para os registros históricos.

O que é mais discutível é se Jesus nasceu efetivamente em Belém e não em Nazaré da Galileia, como muitos pesquisadores afirmam hoje. Para estes, o nascimento em Belém era imprescindível só para que Jesus pudesse ser aceito como o Messias prometido, ponto absolutamente fundamental para converter os judeus. Mas totalmente irrelevante e mesmo contraproducente para tentar converter os não-judeus ou gentios.

Para estes, apresentar Jesus como o Prometido, o Ungido que veio salvar o povo judeu era um inconveniente, posto que os judeus não haviam sido salvos e redimidos do ponto de vista de independência, de país territorial, uma vez que estavam, desde o ano 70 AD, derrotados e expulsos para sempre de suas terras pelos romanos.

Isso porque os gentios não estavam nem aí para a salvação dos judeus monoteístas. Mas, politeístas que eram, sempre estavam propensos a acreditar em mais um deus. Na época do advento do cristianismo em Roma, havia mais de 25 mil deuses cultuados, oriundos de todas as milhares de culturas e tribos do imenso império. E, como nenhum deles resolvia, sempre havia esperança em mais um deus salvador.

Ao tempo de Niceia, era absolutamente imperioso poder apresentar Jesus não mais como o Libertador (fracassado!) do povo judeu, mas como um deus todo-poderoso que, diferentemente de todos os outros, acenava para o povo comum, para os escravos e as mulheres explorados, com compaixão e esperança de redenção e recompensa em uma vida futura. Há muito tempo deixara de haver judeus conversíveis à nova fé na diáspora e ela só se propagava agora entre os não-judeus do império. Nenhum Mitra ou qualquer outro deus poderia encarar essa força competidora nova.

A ESTRELA DA BELÉM

Não vou discutir o nascimento fora de Belém. Vou aceitá-lo como um ponto de partida para falarmos sobre a Estrela dos magos. Teria ela existido de fato? Vamos começar concedendo que sim e partir para buscar seus indícios históricos e astronômicos.

É preciso considerar que, nessa época, todos os pontos luminoso vistos no céu, com exceção do Sol e da Lua, era chamados de estrelas. Dentre os cerca de 6000 pontos luminosos vistos a olho nu no céu sem Lua, havia cinco com comportamento anômalo. Ao invés de permanecerem fixas como todos as outras, essas estrelas se movimentavam lentamente entre as demais, um movimento vagaroso só perceptível pela observação diária, ao longo de semanas e meses. Essas estrelas receberam o adjetivo de errantes. Havia 5 estrelas errantes e todas as demais eram estrelas fixas. Ou, usando a palavra grega para errante (= planeta), havia as estelas fixas e as estrelas planetas.

Ao longo de milênios as estrelas planetas foram sendo seguidas e estudadas mais do que as outras. E receberam nomes próprios: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, no mundo romano. Foram concebidos como sendo as próprias manifestações físicas desses deuses.

Então a Estrela de Belém tanto poderia ser o que hoje chamamos de estrela, como poderia ser o que hoje chamamos de planeta. Posto que, para os antigos, todos eles eram somente estrelas.

Como estrela, tendo a intensidade luminosa que o evangelho lhe associa, poderia também ser um especial tipo de estrela que se conhece melhor hoje em dia: uma nova ou uma super nova.

Como planeta, poderia ser uma especial conjunção de dois ou mais planetas. Esta é uma hipótese defendida pelo grande astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), descobridor das três grandes leis matemáticas dos movimentos planetários, que aventou ser a estrela de Belém uma serie de três conjunções dos planetas Júpiter e Saturno durante o ano de 7 AC.

E poderia ser, em último caso, um cometa.

Na 3ª parte deste texto sobre Natal, 2ª parte sobre o Nascimento de Jesus Cristo, vou tratar de mostrar cada um dos asterismos acima referidos, nominando todos os fenômenos de novas, cometas e conjunções planetárias ocorridos entre 7 e 4 antes de Cristo.

E chegaremos à conclusão que há, sim, indícios históricos e astronômicos que apontam para possibilidade de as indicações geográficas e históricas de Mateus estarem corretas.

CONTINUA

 

 

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