O Natal de Yasmin (Maria Cristina Dias)
O Natal de Yasmin
Maria Cristina Dias
Naquela noite, Yasmin não demorou a dormir e nem pediu que a mãe contasse uma história a mais. Sentiu as pálpebras pesadas de cansaço, escovou os dentes sem ninguém mandar, pulou na cama e se deixou vencer pelo sono. Era Natal e ela, sem se dar conta, adormeceu sorrindo levemente, abraçada à sua bailarina de crochê.
Fim.
Como assim, fim? Acabou?
Ora, caro leitor, histórias de Natal sempre têm um final terno, que enche de esperanças nossos corações cansados da realidade do dia a dia. Criancinhas sonhando, abraços, fé renovada para o ano todo. Por que, então, fazer de conta que esta vai ser diferente?
Isto posto, vamos falar de Yasmin.
Era uma menina, como vocês já devem ter percebido pelo nome. Tinha uns quatro ou cinco anos, não sei bem até hoje, e grandes olhos castanhos capazes de esquadrinhar o mundo em que vivia e ver coisas que nem sempre vemos. Também tinha mãos inquietas de mexer e pés inquietos de correr, que a faziam perceber o mundo ainda melhor que
seus grandes olhos castanhos.
“Não” era uma palavra vaga, que aparecia de vez em quando, mas que logo era deixada de lado. Não, ela não era dessas crianças birrentas, que desconhecem limites e que queremos ver bem lindas e felizes – mas longe, bem longe de nós.
Yasmin tinha um jeito doce de conseguir o que queria. Ouvia, argumentava, sabia até esperar a sua vez. Olhava para os pais com seus grandes olhos castanhos (já falei deles, né?) e era quase impossível resistir aos seus apelos. A paz reinava em casa, enquanto ela crescia e experimentava a vida ao seu redor.
Mas eis que um dia, algo aconteceu. Como e porque aconteceu, eu sinceramente não sei.
Mas aconteceu.
Lá estava ela, andando pela rua de mãos dadas com os pais, quando uma vitrine lhe chamou a atenção. Havia uma boneca olhando fixamente para ela, com seus olhos de vidro. Não era uma boneca comum, dessas que aparecem em comerciais de TV e que falam, andam, correm e, se bobear, até viram cambalhota. Não, essa não fazia nada diferente. Ela até poderia dançar, se tivesse sido feita em uma fábrica. Mas não foi. A boneca, uma bailarina, na verdade, foi tecida, ponto por ponto, ao longo de dias, por um par de mãos que manejava uma única agulha. Era uma bailarina de crochê.
Charmosa, estava lá na vitrine, com as longas pernas cruzadas e as mãos em uma pose graciosa como só as mais graciosas bailarinas sabem fazer. Ao seu lado, muitos outros brinquedos, bonecas de vários tipos, mas nada tão sedutor como a delicada bailarina de crochê.
Ao ver a bailarina, o coração de Yasmin disparou. A respiração ficou suspensa por um tempo que pareceu infinito. O rosto ficou vermelho. E ela só pensou em uma coisa:
– Eu quero!!!
“Oh, vamos ver a bailarina”, pensaram os pais, que não estavam acostumados a ver tamanha comoção.
Mas a boneca era feita à mão, cara. E não era Natal, nem Dia da Criança, muito menos aniversário. Presente não se dá todo dia, era preciso esperar os momentos certos.
– Eu quero! – gritou a menina.
Como assim, gritou? Mas ela não ouviu os argumentos, não sabia que era preciso esperar? Não ouviu que era cara e era preciso juntar as moedas para comprar? E quem sabe, bem ali, na vitrine vizinha, não haveria outra boneca, outra bailarina, ou quem sabe uma trapezista mais ousada?
– Eu quero!! – gritou mais alto, e jogou-se no chão, daquele jeito que fazem as mães morrerem de vergonha nos supermercados e desejarem pegar as pequenas criaturas pelas orelhas (ops, isto não é certo nem educativo, sabemos, mas atire a primeira pedra quem nunca teve vontade).
Diante de tão inusitada cena, os pais fizeram o que tinham que fazer. Birra não é argumento e não pode ser premiada. Acabou o passeio, hora de ir para casa.
Yasmin chorou, chorou, chorou. Encheu baldes de lágrimas. Os grandes olhos castanhos ficaram pequenininhos, como se tivessem se esvaziado.
Os dias se passaram, mas a tristeza persistia. A birra também passou, pois não era de sua natureza ficar se jogando no chão por aí. Coisa feia! Tsc, tsc.
A menina sonhava com a boneca. Uma noite estavam ensaiando passinhos simétricos na sala de casa, desses que a gente vê em vídeos na internet. Outra noite, estavam no palco de um grande teatro, como cisnes brancos em um lago imaginário, morrendo por um amor que ainda não sabiam bem como era. Ou ainda estavam sentadas no chão,
experimentando roupinhas e conversando sobre tudo e nada, como só as bonecas sabem conversar.
Acordada, desenhava nos seus cadernos e cantava para que a amiga pudesse bailar.
Era tudo, entretanto, imaginação.
A bailarina sumiu da vitrine, provavelmente foi para uma casa distante, fazer feliz outra criança.
Yasmin, porém, não a esquecia. Era como um amor desses que a gente sente de longe, que provoca aquele calor no peito, mas que a gente lá no fundinho sabe que nunca vai conseguir realizar. A menina se apaixonou pela bailarina à primeira vista, com cada fibra de seu pequeno ser. A amava profundamente, ela já era sua melhor amiga, mesmo sem
nunca tê-la por perto.
De alguma forma, esse amor transbordou em palavras e foi parar em uma cartinha para o Papai Noel. Talvez o bom velhinho que vive em nossa imaginação tivesse o poder de realizar tão grande amor. Talvez! Quem sabe?
Naquele Natal, a família se reuniu como fazia todos os anos. A casa estava cheia de luzinhas, Yasmin ganhou um vestido novo, e a avó fez um frangão desses bem grandes, que só aparecem nessa época do ano. A menina estava feliz, corria com os primos, pulava no colo dos tios, conversava com um e com outro, contando aquele mundo de
novidades que só as crianças de cinco anos (ou será quatro?) sabem contar.
Na hora da sobremesa, alguém jogou umas balinhas pela janela. O que seria aquilo? Bem, melhor recolher porque ninguém é bobo de recusar bala. Um sininho foi ouvido de longe e a criançada logo percebeu que havia uns pacotinhos embaixo da árvore de Natal.
Que danado esse Noel! Passou correndo e nem parou para dizer um oi ou comer uns biscoitos.
De longe, Yasmin prendeu a respiração. Seus grandes olhos castanhos, capazes de esquadrinhar o mundo em um instante, viram algo diferente. De dentro de um pacotinho com laço de fita, escapavam duas longas pernas de crochê, com sapatilhas de bailarina na ponta dos pés.