O presente que não era de Natal (Bernadéte Schatz Costa)
O presente que não era de Natal
Bernadéte Schatz Costa
— Nossa, como o ano passou rápido. Logo, logo é Natal.
Em meio a conversas fúteis Emília dispara esse comentário, dirigindo um olhar atento para vislumbrar a paisagem pela grande janela, como se quisesse prever o futuro ou voltar ao passado.
Era uma tarde morna de primavera, eu estava elegantemente vestida, sentada numa mesa de café, com minhas três melhores amigas: Emília, Regina e Lavínia. A reflexão de Emília fez com que nossas feições se tornassem nostálgicas. Naquele momento cada uma de nós viajou ao passado resgatando memórias bordadas por luzes natalinas.
Um longo silêncio musicou aquele ambiente, que para alguns era de socialização, para outros de refúgio. O relógio suspendeu seu desejo de correr para sussurrar o escasso tempo que nos restava. Apenas vozes internas ressoavam para se libertarem do bolor de algum instante. ,
Olhei para Regina que estava à minha frente, seus olhos, sempre opacos, agora, apresentavam um brilho sutil. Quais guardados eram abertos, por Regina? Teria ela ainda condições de acessar a sua memória? Já Lavínia, com sua vivacidade, trazia um largo sorriso em seu rosto. Eu senti, naquele sorriso, que lindas recordações de um tempo muito longínquo acenderam em sua mente ágil e atenta.
Como será que Emília e Lavínia viam minha reação à aproximação do Natal? Minha mente divagou. Foi há tanto tempo… Tinha programado tudo. Queria fechar meu ano, aquele icônico da comemoração dos 60 anos, com uma viagem. Cada passo dos preparativos foi detalhado: a compra da passagem, o período do ano, o fazer a mala, o embarque, a chegada ao hotel. Foram dez dias de total encanto e entrega. A poesia desabrochava nas singelezas: nas pessoas que caminhavam, nas compras para presentear os amigos, nos passeios aos jardins. A lembrança estava viva em mim, parecia estar acontecendo naquele exato momento.
Viajei sozinha, mas não me sentia só. Andar pelas avenidas e praças, num entardecer púrpura, quando as luzes natalinas começavam a desenhar árvores e casas, trazia uma sensação de contentamento, pois as múltiplas cores não permitiam tristezas.
E os cafés e restaurantes? Ah! Nada como adentrar na gastronomia local, degustar as delícias de tradições centenárias, preparadas e temperadas pelos habitantes, guardiões de receitas trazidas de geração em geração. Percorrer museus, parar em frente e contemplar obras de arte criadas há séculos: arrepiava! Conhecer os locais e monumentos que relembravam Edith Piaff, que emocionante. Arrepiavam também os concertos a que fui assistir, o de Chopin foi especial.
Um grande rio cortava a cidade… Os rios sempre estão presentes, querem nos contar coisas, mas na correria da vida não queremos ouvir. Nessa viagem, tirei um tempo para atravessar pontes. Numa delas, parei no meio para observar as águas. O rio sorriu para mim, querendo me dizer que, assim como ele, a vida tem fluxo, não para. Suas águas não eram cristalinas, pois no percurso o rio juntou impurezas, algumas naturais, outras que lhe foram lançadas, mas haveria de se purificar no mar.
Faltava um dia para o Natal e a viagem estava chegando ao fim. Observei tantas coisas, andei por tantos lugares. Para mim cada amanhecer era Natal: sempre um nascimento. Afinal, a vida é um milagre!
Reservei uma mesa no lugar mais alto da cidade para a Ceia de Natal. Queria passar a noite ali para ver o dia amanhecer, sentir a fusão das luzes: a despedida da lua e o bom dia do sol. Uma grande e linda árvore decorava o restaurante, todos queriam uma foto junto dela. Eu preferi recortá-la e colar na memória, mas um grupo de pessoas me puxou para um registro. Na Cidade-luz aprendi que só há uma forma de manter uma urbe iluminada: com o calor das pessoas.
Na volta, sim, lembro bem que regressei dois dias após o Natal… Vivi muitos outros eventos natalinos iluminados, mas nenhum foi como aquele que fez parte da viagem: presente de aniversário.
O silvo do trem que todos os dias, naquele mesmo horário, passa próximo à nossa Casa de Repouso, nos tirou do devaneio para a realidade.
Cada uma foi discretamente restabelecendo conexão com o lugar, menos Regina, que com nosso movimento tornou a ficar com os olhos opacos, a olhar para o nada.
Para alegrar o ambiente andei elegantemente, ainda que vagarosa e claudicante, até o velho piano, com meu vestido floral sendo tocado pelo vento vindo da grande janela. Ao sentar, dedilhei a música: O Sanfoneiro Só Tocava Isso – grande sucesso de Dircinha Batista da década de 40. Um coral de vozes trêmulas, mas afinadas acompanhou a melodia. O baile lá na roça/ Foi até o sol raiar./A casa estava cheia/ Mal se podia andar. / Estava tão gostoso / Aquele reboliço / Mas é que o sanfoneiro/ Só tocava isso…/ (…). Depois de repetir três vezes a canção, imitando o sanfoneiro, falei: Especialmente para você, Emília! E emendei uma das mais lindas canções de Edith Piff – “Non je ne regrette rien” – “Não! Absolutamente nada…/Não! Não lamento nada…” Minha voz, com uma energia vibrante (que veio da juventude) ressoava, num francês perfeito, por toda a Casa de Repouso.
Lavínia, sempre entusiasmada, puxou um — Bravo Anna!!! Seguida de Emília — Viva Anna!! Ao olhar para Regina consegui alcançar um tímido sorriso em seus lábios e suas mão fracas juntarem-se em aplausos.
Passamos o restante da tarde rindo de nossas experiências, pois cada uma viveu muito bem seu presente: um presente que não era de Natal, mas da vida.