O que, mesmo? (Donald Malschitzky)
O que, mesmo?
Donald Malschitzky
Pedais solitários em longos e ermos caminho e a solidão forçada durante a pandemia ajudaram bastante. A mente em constante ebulição – existe algo em comum entre a adolescência e a velhice, ainda bem – foi determinante para que, mesmo só, converse comigo mesmo. Quantos textos, frases e palavras em forma de achados pousaram, cantaram um pouco e migraram para um limbo especial de onde só sairão com alguma senha que nem eu conheço! Dormem, hibernam ou simplesmente se esvaem, embalados pelo prazer de terem sido urdidos.
Dei de falar alto comigo mesmo, principalmente como incentivo em momentos de dificuldade. Ao subir morros, pedalando, proponho desafios e os expressos em voz alta: “Até aquela curva, depois da pedra, de lá dá pra ver mais longe, aguenta joelho, depois você descansa.” Xingo-me: “Deixe de ser fresco, força, seu fracote, vamos”. Em casos mais extremos, alguns palavrões ajudam… Talvez para evitar encrencas, não respondo, apenas ouço… As árvores, os bananais, o gado e os pássaros, limitam-se a me olhar. Devem temer as reações do maluco que se arrisca a quebrar os silêncios das paisagens bucólicas.
Essa coisa pega: virou truque para organizar minha agenda na cozinha. Os cachorros e gatos, parece, descobriram como funciona, ou deveria funcionar, e decidiram interferir: basta que eu verbalize algum passo que pretendo dar para começarem uma ladainha de latidos e miados que pulverizam todas as palavras e intenções. Ao menos paro de falar sozinho, pois tenho interlocutores, inconvenientes, mas interlocutores. Levantar a voz para começar de novo é a única solução.
Mas, e por que não me limitar a simplesmente montar um cronograma mental? Funciona, mas não tanto. Em voz alta, dá melhores resultados, embora seja patético para quem vê ou só escuta.
Mesmo bom, o remédio tem se provado pouco eficaz para aqueles esquecimentos que, dizem, são comuns ao passar do tempo: o que eu ia fazer, mesmo? Abro o armário, olho para as xícaras que devo apanhar, e esqueço o que queria fazer, abro o micro-ondas para retirar o suco gelado(!) e acabo sentando à mesa sem nela ter colocado o pão para nosso café da manhã. Fora outras coisas piores. Quando acontece, chamo-me à atenção. Não resolve, mas sinto-me vingado de mim mesmo.
Fui ao médico; aplicou um teste bem básico e garantiu que estou normal, mas, por via das dúvidas, encaminhou-me a um especialista…. de que, mesmo?