O sonho de Sóstrato (Lufiego)

O sonho de Sóstrato

O Farol de Alexandria

E A Pedra Fundamental de Uma Grande Nação

Em meados do século III a.C. a obra estava concluída. Sóstrato de Cnido, o arquiteto, guardava na caixa o compasso e o esquadro e desmontava sua prancheta para colher os louros de sua façanha construtiva. O farol era uma maravilha da arquitetura ptolomaica no delta do Nilo, orientando os navegantes dia e noite, como se fosse o centro luminoso do mundo antigo. Sóstrato foi chamado ao palácio do Rei Ptolomeu II, para um grande banquete em sua homenagem. Seu nome foi anunciado e ele adentrou no enorme recinto sob magnífica abóboda de aço, formada por 33 guardas reais. Sírios o acompanhavam pelo caminho, carregados por ilustres cortesãos. Recebeu todas as homenagens de um soberano satisfeito, bebeu o melhor vinho, degustou iguarias saborosíssimas, as odaliscas dançaram em sua volta e, como presente supremo do rei, ao final da celebração, foi levado ao harém, para uma noite digna do maior arquiteto grego do Egito. Adormeceu, seus olhos se abriram para o mundo dos sonhos e viajou no tempo. Os séculos se passaram como se fossem segundos. A terra tremeu uma primeira vez, depois outra, e a magnífica torre luminosa soçobrou em ruínas, que finalmente foram engolidas pelo mar no século XV, depois de 17 séculos. Sóstrato quis chorar. Porém, mal as primeiras lágrimas escorreram pelas linhas descendentes do rosto, descendo pelo pescoço, quase molhando a gola de suas vestes, e o sonho o levou ainda mais para o futuro, em pleno século XX.

Caía uma chuvinha fina e persistente. Sóstrato estava em Alexandria, mas como tudo estava mudado! Onde estava o mar? Encontrava-se diante de um rio, bastante largo, é verdade, mas apenas um rio no lugar do mar. O farol sequer estava à beira d’água, mas cerca de dois quilômetros e meio terra adentro. Teria o mar encolhido a esse ponto? Que sonho fantástico! Como a cidade estava transformada, o aspecto e as roupas das pessoas eram totalmente diferentes. Estranhas máquinas ambulantes se locomoviam sozinhas; onde estavam os cavalos? De dentro delas, observava pasmo, quando paravam, saíam pessoas, vestidas de modo exótico, mas ao mesmo tempo familiar, porque algumas cingiam aventais e ostentavam insígnias com os símbolos de sua própria profissão. Teria morrido ao invés de estar sonhando, perguntava-se atônito diante de tantas visões inesperadas. Alguns prédios até lembravam antigos projetos que traçara antes de construir o farol na pequena ilha, junto à costa, todos descartados por terem sido considerados utópicos e inexequíveis. Porém, tudo era muito diverso e espetacular, o que fascinava o intelecto do mestre construtor.

Uma grande procissão se dirigia ao farol, agora erguido no alto de uma colina, de onde um atirador teria vista privilegiada. Resolveu segui-la. Os que marchavam eram aplaudidos por muitas pessoas que se aglomeravam em ambos os lados da rua, que iniciava no rio e ia até à frente do grande monumento. Havia muitas bandeiras, de todos os tamanhos, todas iguais; como eram lindas, compostas por listras brancas e vermelhas e estrelas brancas sob um fundo retangular azul, não havia monotonia naquela inusitada paisagem urbana. O chuvisco não cedia. As pessoas portavam estranhas proteções individuais contra a chuva, pequenas armações circulares, parecidas com aquelas que os viajantes do deserto utilizavam em suas ensolaradas peregrinações. Os homens desfilavam garbosos, ostentando aventais belíssimos, repletos de cores e símbolos, grande parte dos quais bastante conhecidos. Chamou-lhe a atenção, de um modo muito especial, fazendo com que se lembrasse de sua caixa de instrumentos, um estandarte no qual sobressaíam o compasso e o esquadro sobrepostos de modo geométrico, formando ângulos elegantes. Que Mistérios seriam aqueles, pensou. Ficou maravilhado com a passagem de jovens moças, que só poderiam ser sacerdotisas de um poderoso deus pela graciosidade de suas vestimentas e pelos símbolos que traziam consigo. Vinham lideradas por três das mais graciosas, que pareciam ter saído de um templo grego, o que convenceu Sóstrato, mais uma vez, de estar em Alexandria, só que em outra época, era a única explicação que conseguia dar. Com vestidos brancos, à moda helênica, longas capas púrpuras e delicadas coroas que reluziam mesmo naquele tempo, agora apenas nublado, pois a chuva cessara por completo, as jovens eram aplaudidas com entusiasmo e carinho pela multidão. A que vinha à frente, com longos cabelos delicadamente trabalhados, portava a cornucópia da fartura e as outras duas traziam uma urna de incenso e uma pomba branca. Ficou imaginando a riqueza de significados daquela alegoria. Em seguida vinham rapazes, também muito jovens e garbosos. Muito bem vestidos, trajavam uma capa magnífica preta e vermelha e traziam sua bela bandeira. Por último, encerrando a procissão vinham homens muito descontraídos e alegres, que acenavam ao público, sorriam, brincavam entre si, dando pulos, andando abraçados, uns vinham nuns carrinhos vermelhos nos quais mal cabiam, e todos tinham um barrete cônico rubro na cabeça, com símbolos variados que lembravam as coisas como eram; chegou a ver dunas, tamareiras e camelos bordados com primor. Traziam grandes figuras de crianças enfermas assistidas por pessoas de branco. Uma grande e bela procissão até o magnífico farol, o qual, pelos poderes do sonho, lá estava no alto da colina, inexplicavelmente longe do mar.

Ao chegar aos pés do magnífico monumento, viu que as coisas eram um pouco diferentes; subiu alguns degraus e adentrou no edifício. Foi como entrar num templo grego, esplendoroso, todo feito de pedras trabalhadas pelos mais expertos artífices. Ficou estupefato diante de uma colossal estátua. Que deus seria aquele? O deus dos construtores, pelo avental que trajava, concluiu. Mas não era um deus, era um homem. Qual teria sido, então, o seu feito? Nesse instante, um guia, acompanhado de pequeno grupo de pessoas, estranhamente vestidas, numa língua que entendia, embora tivesse certeza de jamais tê-la ouvido antes, mais uma vez são os poderes do sonho, passou a explicar quem era aquele homem eternizado naquele lugar magnífico. Era um pedreiro-livre, perito em manusear a trolha, um homem de bons costumes, simples e reto, dedicado aos afazeres do campo e um grande general, um dedicado pai de família e pai de uma nação numerosa e próspera, conhecido como a pedra fundamental da grande civilização, que a partir de Alexandria se estendia ao longo de planícies, serras e cordilheiras, campinas, desertos e florestas, atravessada por rios gigantescos, formando imensas cidades. Uma terra que se estendia para tão longe que encontrava o mar do poente. Então, quem era aquele homem venerado por todos? Sóstrato não ouviu seu nome. Soube apenas que era chamado de “cornerstone”, e que suas ações tinham resultado em grandes benefícios cívicos e regulatórios para milhões de pessoas. Emocionado, por ter conhecido um maioral dentre os maiores, o arquiteto sonhador fechou os olhos, deixou escapar a última lágrima, e acordou impressionado, como todos os que acordam de um sonho parecendo realidade. Levantou-se, olhou pela janela do palácio, os primeiros raios solares despontavam no horizonte, e com uma profunda expiração de alívio viu o seu farol à beira mar, tendo a certeza de que ele ainda brilharia por muitos e muitos séculos orientando os navegantes. Lembrou de algumas imagens daquela Alexandria surreal de seu sonho, espreguiçou-se longamente, e iniciou a rotina de mais um dia.

Marcelo Lufiego