O velho Fontes
Henrique da Silva Fontes, nome de batismo e de registro civil. O carinhoso apelido era reverencial e referencial. Dentro e fora da Faculdade de Direito e das outras, mais tarde, desde há muito, pois a sua vida cotidiana era admirável. Especialmente pelo espírito infinitamente horizontal, aberto, antenado e turbinado. Mais, ainda, pela coerência do discurso dito com o feito. As mais das vezes com saboroso humor.
Foi, dentre outras disciplinas, nosso professor de Economia Política, a mais árida das ciências jurídicas no primeiro ano. A sua erudição lhe permitiria o ministério de qualquer delas do currículo. Fora, com em tudo, notável desembargador do Tribunal de Justiça Catarinense, deixando votos e acórdãos de atualidade permanente. Como tantos outros do Corpo Docente da faculdade primogênita.
Mas a sua marca a ferro em brasa era a verticalidade, de que jamais abriu mão e o tornou lendário, emblemático, folclórico, modelar e clássico.
Os episódios são muitos e ricos na exemplificação.
Já o conhecia do movimento cultural Florianopolitano, onde ele se misturava aos velhos e a aos moços, contagiando-se com o que de melhor cada deles tinha. E lhes transmitindo a sua sempre bem pensada colaboração.
Seu aluno, meio travesso, quis fazer uma brincadeira com um colega de nome Amphilóquio. E perguntei ao Velho Fontes, durante a aula, o que significava aquele nome. Ele era autor de dicionário de nomes próprios e familiares.
Não me respondeu, se não para dizer que desconhecia aquela expressão em Economia Política, cuja aula estava ministrando.
Sentei-me levemente ruborizado sob vaia geral.
Ao final da aula, mandou-me aguardar, enquanto os colegas se retiravam. Esperei nova reprimenda. Qual…
Ele, tranqüilamente, me explicou o significado daquele nome, proibindo-me, por isso, de gozar o seu portador, uma figura notável entre os alunos do período.
Como a sua aula fosse pela tarde, às dezoito horas, resolvemos gazeá-la num certo dia quentíssimo de verão. Porque íamos, obrigatoriamente, de paletó e gravata. Ficamos na cantina do Setembrino. Embaixo e nos fundos do prédio. Nos limites da Faculdade.
Não se deu por achado. Mandou o Camões fechar a porta, recolher o livro de chamada e se trancou sozinho lá dentro. Ao final, saindo, chamou o Arthur, bedel-mór da Escola, e lhe disse:
- Não anote o comparecimento de ninguém e, por favor, lhes diga que esta matéria de hoje estará em todos os pontos da prova.
Diretor, viu o burrinho puxador da carrocinha de lixo da Prefeitura pastando tranqüilamente no fundo da Faculdade ali onde havia quadras de esporte, frente para o Largo Fagundes.
-Seu Arthur, não deixe esta alimária subir para cá.
– Por que, professor Fontes?
– Porque há de só querer sair com diploma, seu.
Como exigia que freqüentássemos as aulas com paletó e gravata, surpreendemo-nos quando nos liberou do flagelo, à época do estio.
- É que há membros da administração que não os usam. (Alusão ao sempre jovial Dr. Bulcão Viana, Secretário da Escola).
Andava permanentemente carregado de N livros de todas as matérias. Turbinado- não era fácil acompanha-lo a pé – e antenado, lia de tudo. Ouvia de tudo com atenção. Discutia sobre tudo. Ensinava com a palavra solícita e o seu exemplo.
Quando o Governo Estadual resolveu reformar o Teatro Álvaro de Carvalho, destruído como Cine Odeon por causa de uns filminhos de sacanagem, exibidos pelo seu Eurico e pelo genro, o Bicudo, estudou o projeto, e junto conosco do Teatro Experimental foi à reunião convocada pelo arquiteto e, revelando-se o historiador, o defensor do patrimônio histórico, o étnico, o jurista, o teatrólogo, o ator deu a sua opinião ao arquiteto:
– Refaça tudo!
E explicou porque, salvando a magnífica construção em puro estilo Manuelino, e logrando a reforma inteligente, prática, moderna.
Certo dia foi a Elfa – com perdão da má palavra, como escrevia o Ju Ramos, em O Estado – antecessora da Celesc.
No guichê explicou a que vinha: reclamar da conta de luz.
– Não está certa, moço!
O funcionário o mirou de alto a baixo e pensou (saco, que quer este velhinho, usando este óclinho engraçado – era o pince-nêz, auxiliar da sua vista e parte da sua indumentária diária – a esta hora do dia, que eu refaça o cálculo? Dane-se!) De quanto é o engano? O senhor tem de preencher este formulário e aguardar a conferência para receber, se houve cobrança a mais.
- Não, não. Foi a menos, seu!
Esta retidão era pública e familiar. Filhos resolveram dar-lhe um carro para locomover-se, independendo-se do ônibus Circular, no qual ia a toda a parte. Menos para a futura Universidade sem fazer baldeação para o da Trindade.
Seu filho Jorge, o caçula, certo dia, lhe pediu a chave para uma voltinha. Experimentar…
-Sabes dirigir?
- Sim, papai.
- Pois, quando tiveres a idade e a carteira de motorista, sem cometer contravenção penal, te empresto o carrinho. E foi-se negando-o.
Diretor da Faculdade de Filosofia, ofereceu-se para ir à Brasília buscar o reconhecimento dela para assegurar o nascimento da UFSC. Já deveria ter uns oitenta anos.
- Professor, vamos pedir a passagem à TAC. (a Transportes Aéreos Catarinenses, primeira companhia do gênero no Estado, onde o Prof. Ferreira Lima tinha participação).
- Pra que? Não viajo de avião!
Foi e voltou de ônibus, vivendo dois episódios próprios da sua personalidade.
Ao chegar ao Ministério, declinou o seu nome e que queria falar com o Ministro. O oficial de gabinete foi avisado pela recepcionista e veio saúda-lo, mas tentou enrolá-lo com um chá de espera mandando que lhe servissem cafezinhos. “Ora, um professor velhinho, lá de Santa Catarina, a querer roubar o precioso tempo do Ministro, onde já se viu?” Ao terceiro cafezinho, foi categórico:
-Avise ao Sr. Ministro que só saio daqui, quando s. exa. me atender- alertou ao Chefe de Gabinete, que tratou de descobrir quem era aquele professor velhinho tão obstinado. E, ao saber, consultando certo deputado federal catarinense, (o Velho Fontes ?!!!) imediatamente, o mandou entrar para ser atendido pelo Ministro. (Ministro, o deputado Wanderley disse que o homem é fogo. Para atender logo. É um dos maiores patrimônios do Estado). Assim, também advertido das virtudes do Velho Fontes, sem delongas e desmanchando-se em salamaleques, assinou o reconhecimento da Faculdade de Filosofia e fecundou a Universidade Federal.
De volta, fomos saúda-lo na agência do ônibus, ali na Felipe Schmidt, pois não existia rodoviária, então.
E o Carminatti, saliente, como todo o locutor de rádio, lhe perguntou:
-Cansado, Professor?
-Não, moço, nem vim empurrando, nem puxando o ônibus. Mas bem sentado, seu.
Além de fundador da Faculdade de Direito, fundou a de Filosofia e a Universidade. De todas foi emérito professor. Em meio a gigantes do Direito, advogados e juizes, médicos – Wanderley da Nóbrega, Moura Ferro, Othon d´Eça, Alves Pedrosa, Ferreira Lima, Bayer Filho, Renato Barbosa, Henrique Stodieck, Patrocínio Gallotti, Agostinho da Silva, Madeira Neves, Oswaldo Cabral, Aujor Luz, se distinguia e avultava com a sua humildade, a sua serenidade, a sua erudição e, sobretudo, a sua coerência.
Mereceu o título de Cidadão Honorário de Florianópolis, porquanto nascera em Itajaí. E agradeceu, após os discursos dos vereadores, dizendo, em rápidas palavras:
– Se fiz alguma coisa merecedora do honroso título, façam como eu. Obrigado!
Um dia, perguntei-lhe porque não chegara a enriquecer tendo exercido tantas atividades, inclusive políticas, trabalhando tanto, em tantos setores.
Respondeu sorrindo:
– Porque, para continuar sendo Henrique, acabei não enriquecendo, seu.
Crônica premiada no concurso literário “70 anos da Faculdade de Direito de Santa Catarina da UFSC.”