Os meninos do Quadrínculo

Chegou a Quadrínculo um pessoal inteligente, de alguma universidade famosa, sabe-se lá de onde. Cinco homens de rostos circunspectos e três mulheres quietas e compenetradas. Qualquer habitante, por mais descuidado, logo percebia que, entre essa gente estranha, havia um guru, senhor de barba e cabelos brancos, e os demais eram seus seguidores. Vinham em prol de uma missão, mil e tantas hipóteses. O mestre pouco falava a nossa língua e, quando dizia algumas palavras, era com muito esforço e gotículas de suor brotavam em seu afilado nariz.

Perua asiática atulhada – dessas que, além de comportar um monte de gente, sobra espaço para bagagem pesada. Hospedaram-se no Palace Hotel – que não era hotel, mas pensão, cujas estrelas de classificação só existiam no céu, também conhecida na próspera região por pensão da Dona Alzirinha, viúva de longa data, que a mantinha por nítida e precária sobrevivência dela e de dois filhos que estudavam na capital.

Era uma tarde calorenta, dessas de março-abril, pouca brisa e prenúncio de chuva. Mal a equipe se acomodou, a noite desceu e, com ela, uma chuvarada de inundar as baixadas. Assim, naquela noite, por vezes negra, iluminada por relâmpagos fortes, ninguém os viu. O guru de barba e cabelos brancos, que atendia por Bret Harte, trazia os discípulos com normas rígidas. Quem ensaiasse pequenos desvios, um joguinho de cartas, um festival de piadas inúteis, era despachado com notas sofríveis. Por isso, pouquinho depois da sopa de legumes servida por Dona Alzirinha, todos foram quietamente aos seus quartos, sem gracejos, uns para dormir, outros para contar carneirinhos.

O dia seguinte amanheceu claro, diáfano, mundo lavado e abençoado, sol bonito sobre os campos e o casario de telhados escuros.  Uma pequena enchente inundara as lojas dos turcos e muitos deles estavam esbravejando, vassouras nas mãos. Bret Harte e seus discípulos pularam cedo da cama, tomaram o café forte, se abasteceram com pão caseiro, queijo, goiabada, presunto defumado e frutas, e saíram rápidos, apinhados na perua, à procura do colégio pobre da cidade, onde foram recebidos com relativa atenção pelo diretor.

– Com sua permissão – disse Bret Harte, voz arrastada, como se estivesse chupando laranja azeda –, nossa equipe quer fazer uma louvável pesquisa com seus fabulosos alunos!

O diretor, senhor de meia-idade, espécie de gente que já morreu aos trinta anos, mas que só será enterrada depois dos setenta, mirou-os com olhar cinzento, como se estivesse num velório permanente, curvou-se todo, dizendo:

– É de vocês a escola – mirou a molecoreba pobre já reunida no pátio, dando de ombros, enfim que se danassem aqueles malucos.

– Muito obrrriiiigaaadooo, “doctor” – respondeu o mestre Bret Harte.

Todos os alunos foram colocados em suas respectivas salas. Estavam assustados com a presença dos estranhos. Aplicou-se um longo e engenhoso teste. Desconfiados, apreensivos, suavam. Questões circulares, aspirais. Suavam. Repetiu-se a mesma cena à tarde e à noite. A curiosidade roía. Mas os estranhos nada diziam, fechados em copas. Perto da meia-noite, o guru e seu discípulos se reuniram na pensão. Estavam exaustos. Degustaram a sopa de legumes sob um mínimo de palavras. Em seguida, estômagos fartos e aquecidos, Bret Harte se dirigiu a uma mesa grande e tosca, usada antigamente para destrinchar porcos, galinhas e marrecos, soletrou com dificuldade essas palavras aos discípulos:

– Caros amigos, prestem atenção! Aos fatos, pois. Vamos selecionar ao deus-dará apenas vinte testes, escolha livre, ao sabor do vento, e esses meninos escolhidos serão objetos de nossos valiosos estudos.

Assim fez. Jogou para o alto a infinidade de testes e, às cegas, escolheu vinte. Colocou-os numa pasta e fechou o zíper cuidadosamente.

– Agora, boa noite!

No dia seguinte, horário previamente combinado, o mestre e seus discípulos bateram à porta do colégio. Breve reunião com o diretor e os professores, rodeado por seus inseparáveis discípulos, Bret Harte anunciou no tom arrastado o resultado da pesquisa:

– Eis aqui os meninos mais inteligentes deste colégio.

Citou os nomes, pequenas pausas, gotículas de suor brilhando em seu nariz.

– Agora, caros professores, ofereçam condições para que esses talentos sejam realidade no futuro. Adubem a terra, deem-lhes condições, cultivem essas flores promissoras.

Despediu-se. No mesmo dia, o grupo saiu da cidade, viagem de retorno, deixando o povo pasmo. Em poucos dias, a cidade sabia da lista dos mais inteligentes. Muitos comentários – positivos e negativos – rodaram de boca em boca.

Coisas incríveis aconteceram. Um alvoroço. Entre os vinte escolhidos como fina flor da inteligência, estava o filho do bêbado Pacová, sujeito de péssima aparência e de pouca recomendação. Vivia pelos botecos, cara cheia, arrotando histórias, enchendo a paciência de todos, com moscas rodopiando sobre a cabeça. Esse bêbado ficara iluminado com a notícia. Fez disso um acontecimento.

– Está aí, seus panacas! Dizem que eu não presto. Mas aí está! Meu filho vale ouro. Mais ainda: o pilantra puxou a mim. Também sou de boa brasa, nunca neguei fogo. A fruta não cai longe da árvore. Uma vez…

Repetia as mesmas histórias, sempre de copo babado nas mãos trêmulas, azedando a paciência até dos botequeiros.

– De mim, só podia sair coisa de primeira! Pois, vejam só, deixou todos os filhos dessa cidade debaixo de seus pés! Eu  também sou assim!

Certo dia, porque as pessoas viviam gozando de suas histórias enjoativas, pegou o menino e, já de manhã, quando as pessoas ainda tomavam café, começou a via-sacra pelos botecos, cheio de orgulho, mostrando o garoto aos frequentadores daqueles ambientes sórdidos. O menino Ataulfo, envergonhado, rejeitava, chorava e implorava:

– Por que isso, pai? Me deixe voltar pra casa!

Quase levou uma surra. Envergonhado, quieto, acompanhava o pai, cada vez mais bêbado.

– Aí está, seus porcarias, o meu guri! Vale ouro, gente. Ninguém é mais inteligente do que esse pestinha. Pois dizem que não faço nada que presta! Pois, sim, aqui está!

Por várias vezes, o menino viu o pai cair pelas calçadas e, mudamente, ele esperava acordar, desolado. Algumas pessoas de boa índole, vendo o sofrimento do menino, chamaram a polícia e, assim, foram conduzidos para casa numa viatura. Pacová cheirava a vômitos.

Outros casos também se deram. Mas de pouca importância. Havia discussões. Alguns pais descontentes, pois seus mimados filhos não estavam na lista, diziam abertamente que aquela pesquisa não passava de engenhosa mentira. Um nobre e respeitado cidadão quis processar a equipe de Bret Harte. Mas, no fundo, os habitantes desejavam saber o que havia de especial naqueles meninos mirrados, desnutridos, cujos pais, se não eram bêbados, eram gente atirada no mundo, com procedência duvidosa. Um era jagunço e matava por nada; outros viviam pendurados em caminhões de boia-fria e algumas mães se prostituíam.

Eis que um ano se passou. O assunto já havia caído na mesmice. Então, todos viram, de repente, a mesma perua rolar pelas ruas de Quadrínculo. A barba e os cabelos de Bret Harte estavam mais brancos, verdadeiros flocos de algodão; os seus estimados discípulos mais maduros, compenetrados. Pernoitaram no Palace Hotel, comeram a mesma sopa de legumes.

Na manhã seguinte, foram ao colégio e executaram as mesmas tarefas da ocasião anterior, o mesmo teste com os mesmos alunos. Era quase meia-noite quando, já no hotel, depois de outra sopa com legumes, desta vez com peito de frango, anunciou:

– Amanhã – disse, tossindo levemente –, daremos início a análise de resultados.

Foram dormir.

Semanas inquietas viveu a cidade. Vinte e um dias contados nos dedos. A curiosidade aguçada. Por que tantos mistérios? Muitos passavam de propósito na frente do hotel para sondar. Havia breu.  Circulavam histórias. Sem fundamento, é certo.  Mas o guru e seus discípulos não pisaram a rua. Dona Alzirinha apenas dizia: “Estão remexendo uma montanha de papéis”.

Estavam mesmo. Papéis, anotações e gráficos. O que estavam procurando naquela papelada? Para quem olhasse de fora, apenas desordem. Mas não para Bret Harte, que passava regularmente as mãos pela testa, como se enxugasse suor inexistente. Na realidade, ele não acreditava no que via. Estava assustado. Os resultados eram claros. Mas havia uma questão. Bret Harte não sabia a resposta.

– No primeiro teste – relatou a seus discípulos –, nós, de forma obscura, selecionamos ao deus-dará vinte meninos e os classificamos como fina flor da inteligência sobre os demais. Eis, pois, a surpresa. No último teste, onde aplicamos rigor científico, dezenove meninos, que estavam entre os vinte, são de fato os mais inteligentes. Apenas um não está. Um garoto chamado Ataulfo. É necessário uma investigação sobre o sucesso emergente dos dezenove sobre os demais, mas também o decadente fracasso desse caso isolado.

Os discípulos estavam boquiabertos. Não havia tempo para outra pesquisa. Partiriam na manhã seguinte. Provavelmente, nunca mais voltariam àquela cidade. Só os acontecimentos futuros poderiam lançar luz sobre o caso. Lançaram mesmo: um perigoso bandido chamado Ataulfo, o Tulfo Negro, que assustava e liquidava seus concorrentes, foi friamente liquidado por uma gang desconhecida, anos depois.

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