Os tempos do “cinema em casa” (Paulo Roberto da Silva)
Os tempos do “cinema em casa”
Paulo Roberto da Silva
O dia 05 de novembro é considerado o “dia mundial do cinema”. O motivo seria recordar a data em que, em 1895, pela primeira vez os irmãos Lumière teriam exibido seus filmes, em Paris, em uma sessão pública. No entanto, outra publicação menciona que essa sessão pioneira ocorrera somente em 28 de dezembro… Pelo sim, pelo não, talvez caiba aqui a frase do afamado diretor de cinema John Ford, o único premiado com 4 estatuetas do Oscar na sua categoria: “Quando a lenda se tornar mais conhecida do que a verdade… imprima-se a lenda!”.
O fato é que, desde 1895, quantas transformações alcançaram a “sétima arte”! Ainda assim, sua essência se mantém e, falar em “cinema”, tem o poder de nos transportar a um universo paralelo, onde o impossível não existe.
Minha avó materna, Jenny Krüger, contava-nos sobre os filmes de sua meninice em São Paulo, ao tempo do cinema mudo, e das estrelas da época que povoavam a imaginação do público… desde o galã Rodolpho Valentino e sua parceira Pola Negri, até alcançar o casal mais famoso daqueles tempos: Douglas Fairbanks e Mary Pickford, co-fundadores da United Artists juntamente com Chaplin.
Certa vez, quando eu era criança, uma sessão vespertina exibiu na televisão um muito lúgubre filme de Tarzan, da época do cinema mudo. Estávamos na nossa casa de praia em Barra Velha e achei estranha aquela exibição que me pareceu de uma época perdida no tempo. Ao meu lado estava minha avó Jenny que sorriu e, com os olhos brilhando, confidenciou: “Esse foi o primeiro Tarzan que eu assisti: Buster Crabbe!”. Como resultado, vi o filme até seu término, junto a ela.
Nos anos 1950, meu tio-avô Paul-Herbert Seidel empreendeu uma verdadeira expedição a tribos indígenas do Centro-Oeste do Brasil com seus colegas de trabalho do Consulado Alemão em São Paulo e, munido de sua filmadora, registrou em filme essa aventura capitaneada por ele. Guardou o filme por toda vida e lamentava não podê-lo mais assistir porque seu projetor estava danificado.
No início da década de 1970, provavelmente no ano de 1971, pela primeira vez meus pais me levaram a um cinema. Eu tinha apenas 4 anos de idade e lembro desse dia vagamente, mas na minha memória foi algo que me impressionou. O local foi o Cine Colon, na Rua São Joaquim, e o filme era um recém-lançado longa-metragem de animação dos Estúdios Disney chamado “Aristogatas”. Com uma tela de 16 metros de largura, o Colon tinha um estilo todo próprio de anunciar que o início do filme estava próximo: soava um gongo, e uma fileira de luzes se apagava nas laterais do salão… agitando os presentes que estavam dispersos conversando com amigos que eram encontrados com frequência por lá… e então soava um segundo gongo, apagando uma segunda fileira de luzes, indicativo de que era hora de cada um, definitivamente, tomar assento em sua poltrona… e, por fim, vinha o terceiro gongo, quando todas as luzes se apagavam imediatamente, as cortinas eram abertas com lentidão, e o projetor lançava suas luzes sobre a tela.
Depois daquele dia mágico da minha primeira ida a uma sala de exibição, perdi a conta do número de vezes em que frequentei as sessões nos dois cinemas da cidade: o Colon, nosso preferido, com suas poltronas cor-de-vinho, e o gigantesco Cine Palácio, com suas poltronas azuis.
A partir de 1974, quando nos mudamos para o recém-inaugurado Edifício Manchester, no centro da cidade, lá do alto do 11º pavimento (onde morávamos) ficava eu da janela do meu quarto acompanhando a evolução da fila na entrada do Cine Colon: quando ela começava a se agigantar, significava que a hora de descer era aquela! E ali, no “Manchester”, permanecemos até novembro de 1979, felizmente poupados de presenciar o terrível incêndio ocorrido exatos 4 anos depois, em novembro de 1983, e que pôs fim à trajetória do inesquecível Cine Colon…
Em 1980, já instalados em nossa nova casa, chegou minha vez de me lançar de paraquedas nesse mundo de sonhos, e a ideia de ter um projetor de filmes tomou conta do meu espírito. Adolescente curioso que eu era, não me interessavam mais as inertes fotografias e nem mesmo os slides: era o cinema que me animava! Falei com meu pai, que me levou ao Foto York, na Rua do Príncipe, onde o proprietário – sr. Sigmund Jorch – mostrou-nos um equipamento que encheu meus olhos: um projetor Super-8 da marca Tacnon. No Natal daquele ano, em meio aos demais presentes, lá estava o aparelho, acompanhado de uma grande tela a ser fixada na parede nos dias de exibição. Além disso, meu pai incluiu no “pacote” os 2 primeiros filmes do meu “cinema caseiro”: o premiado “Doutor Jivago”, do diretor David Lean, e a animação “Mogli”, da Disney. A esses 2 filmes originais se seguiriam, paulatinamente, outros 93, e até hoje guardo comigo todo esse arsenal: filmes, projetor e tela.
Mas minha ânsia não se deu por satisfeita, nascendo a vontade de criar meus próprios filmes ao invés de me limitar a assistir os dos outros, para o que eu precisaria de uma filmadora. E então, no meu aniversário de 14 anos, meus pais me brindaram com a “Fujica”, como era chamada a filmadora Single-8 da “Fuji”, que ganhei deles juntamente com um livreto para me ensinar algumas técnicas de como fazer um bom filme: as aberturas, cortes de cena, títulos, etc. Com ela, fiz 34 pequenos filmes coloridos e sonoros e, ingenuamente, quando soube que Spielberg ganhara sua primeira filmadora aos 13 anos, achei que meu futuro seria o mesmo! A bem da verdade, desses 34 filmes, apenas 1 não era sonoro: estávamos passando férias em Foz do Iguaçu e região, em meados de 1982, quando o filme que eu trazia na minha máquina acabou e, mesmo percorrendo a cidade de fio a pavio, não encontramos nenhum estabelecimento que vendesse filmes virgens sonoros. Como resultado, foi lá que comprei e fiz meu único filme mudo!
Uma vez em Joinville, era no Foto York que adquiríamos os filmes prontos e também os virgens: estes últimos tinham o formato de uma fita cassete e, após concluída a filmagem, nós os entregávamos também no York, que os remetia a São Paulo para serem revelados. E cá ficávamos na expectativa do seu retorno, que de lá chegava em forma de rolo ou bobina para ser acoplado ao projetor.
Aparentemente, o vírus que me contaminara acabou por atingir meu pai também e, por volta de 1982, adquiriu ele um grande projetor sonoro com o qual passou a exibir em casa filmes de 16mm. Por intermédio do sr. Jorch, tomou conhecimento de que o sr. Horácio Wendel era um grande cinéfilo e, através deste, soube do projetor que um terceiro colocara à venda e que meu pai acabou por adquirir: eu estava com ele no apartamento do vendedor, na Rua Padre Kolb, no dia em que o equipamento foi adquirido. Foi também o sr. Wendel quem o informou da existência de um pequeno grupo na cidade, formado por 4 pessoas (lideradas por ele), que possuíam um projetor idêntico àquele e que, semanalmente, exibiam em suas casas filmes de longa-metragem recebidos de uma distribuidora de São Paulo ou, por vezes, documentários enviados pelos consulados britânico e alemão sediados na capital paulista. Além do meu pai, que acabou se tornando o quinto integrante (em substituição ao vendedor do aparelho), e do sr. Wendel, os demais membros do grupo eram os srs. Jackson Wegner, Roberto Bencz e Luiz Carlos Fronza (que, aliás, é marido de uma das primas da minha mãe). De segunda a sexta-feira os filmes eram exibidos na casa de cada um desses 5 cinéfilos: o primeiro os recebia de São Paulo e, após seu dia de “exibidor”, remetia ao segundo, e assim sucessivamente, até que o último deles enviava os filmes, no sábado, para Blumenau, onde havia um grupo semelhante que, após os exibir em suas respectivas casas, fazia com que retornassem a São Paulo.
Por vezes exibíamos filmes antes mesmo dos cinemas da cidade, o que era um acontecimento! Lembro, nitidamente, das latas imensas que chegavam até nós contendo, no seu interior, os rolos de filmes igualmente enormes, principalmente se comparados com os exibidos no meu projetor Super-8 e, mais ainda, com aqueles feitos por mim na “Fujica” Single-8.
O equipamento adquirido por nosso pai veio acompanhado, também, de uma caixa de som que era colocada ao nível do chão, abaixo da tela de projeção, com um longo cabo cinza conectado a ela e que se estendia por toda a extensão do salão até alcançar o projetor. Isso causava o efeito desejado, de fazer com que som e imagem surgissem juntos para o expectador.
Em nossa casa, aliás, nas noites de exibição (de início, às terças-feiras e, mais tarde, passando a ser às sextas-feiras), meus pais convidavam alguns parentes, vizinhos e amigos que se reuniam nas salas de estar e jantar, onde meu pai conduzia o espetáculo. Mas… se a classificação etária impedisse a presença de menores na plateia, eu era encarregado por nossa mãe de entreter os filhos dos convidados com filmes inocentes da Disney no meu pequeno projetor Tacnon, deixando os adultos em paz. Isso era entediante!
Já na antiga propriedade do sr. Wendel, na rua Otto Boehm, todo o segundo piso fora convertido em sala de exibição e, quando se mudou para sua nova e moderna casa, fez questão de incluir na planta uma sala para projeção de filmes, com uma ampla tela côncava envolta por uma faixa de cortiça, cartazes de filmes famosos emoldurados nas paredes e poltronas estufadas no recinto, além de frigobar e ar-condicionado. Mas havia mais: em um pequeno gabinete anexo, separado da sala de exibição por uma meia-parede de vidro, ficava instalado o projetor, impedindo que o som produzido pelo aparelho atrapalhasse a exibição. Um verdadeiro primor!
Para não perder em civilidade, também nós fizemos mudanças em casa: buscando, principalmente, poupar as salas da minha mãe do alvoroço daquelas sessões semanais, doravante nossa sala de jogos se tornaria, também, uma espécie de “sala de cinema em casa” e, nos dias de exibição, essa sala era semi-esvaziada para, no seu interior, poltronas e cadeiras serem colocadas para o público, com o projetor ficando comodamente instalado numa área anexa, como forma de distanciar a plateia do som incômodo do aparelho. O resultado foi muito bom, verdadeira evolução, menos para mim, pois nos filmes com classificação etária proibitiva, continuava eu como o responsável por exibir as inocentes animações da Disney para os menores…
E havia um outro momento ímpar. Nas noites de verão, por vezes eu instalava meu aparelho no gramado e projetava algum filme diretamente na parede branca da casa, a quase 20 metros de distância: e lá ficávamos nós, ao ar livre, espalhados pelo gramado ou nas espreguiçadeiras, com uma sessão literalmente sob as estrelas!
Isso tudo, para mim, era cinema! E algo assim, nesses moldes, quase uma aventura, arrisco dizer que não se encontra mais.
Nas imagens abaixo, os 2 projetores: o meu pequeno Super-8 e a complicada parafernália do meu pai mas que, com o tempo, também eu aprendi a manusear.