Peguei o trem (Andreia)
Peguei o trem
Andreia Evaristo
Há preciosidades nesta cidade dos príncipes que só percebemos quando mudamos o curso da rotina cotidiana. Nascida e criada na zona norte, sempre me questionei por que motivos ainda mantínhamos trilhos de ferro cruzando o asfalto de algumas ruas, se em todos esses anos de minha vida joinvilense eu jamais tinha cruzado com um mísero trem. Claro que eu já tinha ouvido falar que um ou outro colega de trabalho estava atrasado porque teve de esperar o trem passar, mas a história sempre me pareceu lenda urbana — essas que a gente sempre encontra alguém que jura com os pés juntos de que é verdade, como o chupa-cabras ou o diabo-loiro.
Faz um pouco mais de um mês que nos mudamos para a zona sul e, trazido pelos ventos, o apito do trem me chega aos ouvidos e desperta sensações. Se a casa estiver silenciosa, a nostalgia dos tempos que eu não vivi borbulha dentro de mim, remetendo-me a lembranças em tons de sépia como fotos envelhecidas e monocromáticas. O avô do meu marido era funcionário da estrada de ferro. Há uma aura de mistério e saudosismo nas histórias que seus filhos contam, muito embora haja uma tristeza oculta em cada palavra narrada. A ausência é dura e fria como o metal dos vagões, embora a fornalha do coração mantenha acesa a brasa da locomotiva.
Dia desses, saí de casa alguns minutos atrasada. Tomei o caminho de sempre, em direção ao trabalho — caminho este que passa por cima da linha férrea. Ao me aproximar do cruzamento, o apito que eu ouvia à curta distância se tornou mais e mais alto. Parei diante dos trilhos e contemplei. O tempo é um mago que transmuta a essência das coisas. A máquina a vapor, antigo símbolo de modernidade, passava diante de mim como um resquício de um passado longínquo, uma velharia a atrapalhar a correria dos dias modernos. Motoristas impacientes bufavam, esbravejavam, esperneavam — ainda assim, foram obrigados a dar uma pausa na loucura do tempo que evapora na contemporaneidade para esperar que o trem seguisse seu curso, no seu ritmo, alheio à insatisfação que pairava no ar, enquanto eu me dava o direito de apenas contemplar.