Por causa de uma piranha (David)

POR CAUSA DE UMA PIRANHA [conto]

David Gonçalves

NAQUELE DIA, me achava oco e desprezível. Havia terminado um conto, ainda não tinha começado outro. Caçava assuntos como se caça borboletas. Vagueava pelo quarto alugado feito zumbi. Estava louco para sair e tomar uns tragos. Anoitecia. Então, o telefone tocou. Minha ex-mulher. Notícia ruim. O irmão mais velho dela, um cara alto, robusto, ruivo, de óculos de aro de metal, se suicidara.
Ela, a ex, estava apavorada, reticente. Deu um tiro na boca, ela disse. Fiquei quieto, imaginando o disparo da pistola, a cabeça empurrada para trás, rebentada, o sangue espirrado na parede como uma obra de arte. Você está ai? – me perguntou. Estou. Foi horrível, medonho, voltou a dizer. As palavras me vinham até à garganta, se enrolavam, gelavam, e nada saía. Foi padrinho de nosso casamento, se lembra? Ah, sim, puxei a memória. Senti mal. Parecia que tinha colocado um monte de pregos enferrujados na boca. Precisamos ir no enterro, ela disse. Os pregos remexiam na boca e soltavam a ferrugem densa. O falecido morava em Curitiba, uns 400 km. Teria que viajar a noite inteira. Nunca gostei de dirigir à noite. Fico cego como as corujas. Você está aí? Estou, respondi. O que levou ele a rebentar a cabeça? Ela não sabia. Desconfiava. Ficamos quietos, sem saber o que falar. Por fim, ela disse, enraivecida:
– Deve ser por causa daquela piranha!
Que piranha? Ele não estava casado? Não, havia se separado há três anos. Eu nem sabia. Depois que me divorciara, cortei as relações com toda a família dela. Uma aluna do curso de Letras, ela disse. Metade da idade dele. Metida a poetisa ou sei lá o quê. Dessas coisas que você também gosta. De Camões a Fernando Pessoa, existem mais coisas do que sonha a vã filosofia – ironizei. O chão da poesia não é firme, voltei a alfinetar. Era tão direito, moralista, disciplinado, sequer bebia, eu disse. O que deu na cabeça dele? Bobeira, ela disse. Paixão. Não conseguia nem dar aulas. Só via ela na frente. Devia ser muito gostosa, eu disse. Nada disso. Uma magricela, pernuda, cabelos de carneiro molhado. Só que… Bem, tinha uns olhos verdes. Acho que ele se apaixonou por aqueles olhos. Ninguém sabe o que se passa na cabeça dos outros, afirmei, e me calei. Tudo se acaba, até mesmo o amor. A tua irmã era muito desleixada. Parecia um barril de tão gordinha. Não se cuidou. Nunca vi ela ler um livro, muito menos poesia. Depois… Depois o quê? Bem, depois que ela virou rato de igreja ficou mais xarope. Homens não gostam de mulher sem sal. Sei lá se eu também não teria caído fora do caldeirão. Nosso caso… Ela rebateu:
– Nosso caso foi diferente. Perdi você por essa maldita literatura!
Sim, foi diferente. No caso dele, por causa de uma piranha, abandonou a mulher e três filhos, foi embora só com a roupa do corpo. Você está aí? Estou. Mas por que razão ele rebentou a cabeça? Acho que ele descobriu coisas… Que coisas? Ela vivia colocando chifres nele com os rapazes da Universidade. Isso deve ter deixado ele envergonhado. Brio de homem ferido. Imagine toda a Universidade rindo de sua desventura? Vixe, que língua você tem. O que você faria pondo-se em seu lugar? Fiquei quieto. Palavras travadas. No desespero e na vergonha, fui dizendo, nunca se sabe o que pode acontecer.
– Por que me pergunta? Nosso caso está encerrado, com nó cego.
Ela ficou quieta. Estava chorando? Você está aí? Não houve resposta. Ouvi suspiros contidos. Diabos. O que eu tinha a ver com a besteira do irmão dela? Aborrecido, eu disse:
– Passo aí em meia hora e te pego.
Na boca, senti o punhado de pregos remexendo e soltando ferrugem indigesta. Os homens são bestas mesmo. Estava vivendo o meu próprio conto.

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