Quero de volta a primavera (Hilton)
QUERO DE VOLTA A PRIMAVERA
Hilton Görresen
É, caro leitor, a estação primaveril está quase terminando, mas a primavera não deu as caras. Foi só chuva e chuva (desconfio que este texto já foi publicado mas é daqueles que sempre está valendo. Mudando a estação, é só trocar “primavera” por verão ou inverno e mandar para o prelo).
Sou daqueles que espera essa estação do ano para poder caminhar tendo ao lado árvores floridas, acima o céu de um azul suave como uma taça de pudim, do qual dá vontade de tirar um pedaço, e sentindo no rosto a brisa fresca e reconfortante. Melhor do que isso, só estando em Paris na primavera, andando de charrete num bulevar florido e ouvindo Maurice Chevalier. Mas também se admite ouvir Frank Sinatra (I love Paris in the springtime…).
Estações do ano deixam na gente marcas e lembranças. Lembra daqueles invernos em que sua família enchia as malas de agasalhos e iam passar uns dias na serra, na casa da vovó? Daquele verão na praia, no qual você conheceu aquela linda veranista, vinda do oeste, tiveram um breve romance e nunca mais teve notícias dela?
Lembra daqueles outonos, as ruas repletas de folhas secas, e você saboreando seu café debaixo de um caramanchão, ao cair da tarde?
Quando me volto para os dias de infância, dou logo de cara com a chegada da primavera, depois de um “longo e tenebroso inverno”, a cerimônia do plantio de mudas de árvore na escola, as brincadeiras nas árvores; o tempo parece que revigorava nossa energia infantil.
Porém, naquele tempo, a estação mais esperada era o verão. Não se esperava o verão, como hoje, para fugir do calor na praia ou para renovar o bronzeado. Ninguém pensava nisso. No verão, o mar era nossa segunda casa. Eu morava defronte da baía e as tardes eram cheias de mergulhos e nadadas, ao lado dos amigos. A gente corria por uma rampa e se jogava de ponta-cabeça no mar; era o prazer físico de perfurar como uma lâmina a superfície azul da baía, sentir a água gelada a se fender até morrer o impulso do corpo.
Hoje os verões são tórridos, cheios de barracas, de argentinos, de suor no pescoço e cheiro de óleo bronzeador. Hoje o sol queima, estraga a pele, provoca doença.
Por isso, quero de volta a primavera, pode ser a última, ninguém sabe. Nem que tenha de ir aos tribunais, quero a reposição da primavera, com juros de flores desabrochando, correção monetária de azul cerúleo, limpo de nuvens, e multa de ar leve e perfumado.
TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 04.12.21