Quero falar com meu pai (Hilton)
QUERO FALAR COM MEU PAI
A mulher terminou de limpar o banheiro, deixou uma pedrinha sanitária pendurada na borda do bacio, e foi colocar o arroz para cozinhar, quando trilou a campainha da porta. Deve ser o guarda noturno do quarteirão que vem cobrar a mensalidade, pensou. Esse pessoal vem sempre nas horas erradas. Desatou o avental, arrumou o cabelo e se dirigiu à porta. A campainha trilou novamente. Já vai, já vai! – falou mais para si mesma.
Na porta, um rapaz magrinho, sardento, com olhos esverdeados:
– Quero falar com meu pai!
– Engano, garoto. Aqui não tem pai de ninguém.
– Sei que ele mora aí. Quero avisar que as mensalidades da minha escola estão atrasadas. Ele não está mais pagando.
– Rapaz, você deve estar maluco. Vai embora. Some daqui, senão te toco a cabo de vassoura.
O garoto derreou os lábios, frustrado, deu meia volta no corpo e saiu lentamente.
A mulher ficou cismada: na verdade, ele tinha alguma coisa de familiar nas feições, no jeito de caminhar…Seria possível? Quando o marido chegasse ia ter muito a explicar. Voltou à cozinha, agora com uma pulguinha atrás da orelha. Mais de 20 anos de casados, dois filhos estudando fora, e seria possível não conhecer a tal ponto o marido? Deu um meneio forte na cabeça. Deixa de pensar nisso, mulher. Que adianta ficar fazendo suposições? (Era o que havia aprendido em um curso de relaxamento mental). Espere o Benê chegar e tudo será esclarecido.
Aí pelas 11 horas estava já a mesa posta. Adiantava o serviço, pois costumava tomar um banho antes de almoçar. O marido chegou, afobado, queixando-se do calor. Tirou o paletó, jogou-o nas costas de uma poltrona e já ia sentar-se nela, quando viu a esposa esperando-o em pé no meio da sala.
– Benedito, vem cá!
Quando ela o chamava de Benedito não era coisa boa. Ainda mais com aquele tom carregado de uma censura interrogativa. Foi se chegando, sentindo-se como uma pobre lebre que vai para o abate.
– Veio aqui um sardentinho dizendo que era seu filho. O que você tem a dizer?
– Um sardentinho? – repetiu ele, como ganhando tempo para uma resposta.
– É, um sardentinho com a tua cara. E teu jeito desengonçado de andar.
– E o que você fez?
– Botei pra fora. Onde já se viu?
Benedito franziu as sobrancelhas, uma onda de tristeza desabou em seu rosto.
– Por que fazer isso com o menino. Ele não tem culpa de nada. É um bom rapaz.
– Então você admite? Não precisa dizer mais nada.
– Você tem de entender, mulher. Foi um imprevisto, coisas da vida. Foi durante um encontro do pessoal da empresa, faz uns 15 anos. A gente bebeu um pouco. Havia lá algumas mulheres, essa era uma cabelereira, morava ali perto. De repente, aconteceu.
– Aconteceu, é, seu desgraçado! Cretino. E eu na maior inocência, sem saber que meu marido era um crápula, um cafajeste. Vinte anos de casados e eu pensei que te conhecia.
– O que eu podia fazer? Aconteceu. Não ia deixar se livrarem da criança. Tive de assumir.
– E nunca me contou nada. E eu na santa inocência. Quantas vezes devo ter cruzado na rua com essa tal cabelereira, ela rindo de mim, a trouxa, a idiota.
– Não é isso, meu bem. Você sabe que eu te amo. Nunca ia permitir que rissem de você.
Para ela a situação era inusitada. O marido tinha um filho há uns quinze anos. Isso dava volta em sua cabeça. O que fazer? Fez o que a maioria das mulheres faria: trancou-se no quarto, não sem antes exclamar:
– Coma o seu almoço, se conseguir; depois saia, e não precisa voltar para casa.
Primeiro jogou-se na cama, esmurrando o colchão, os travesseiros. Depois levantou-se, foi diversas vezes ao banheiro, quase sem perceber o que fazia. Abria a torneira, lavava as mãos, puxava a descarga, passava os dedos nervosos pelos cabelos. Abria o roupeiro, jogava no chão as roupas do marido e pisava raivosamente nelas.
Mas aos poucos foi se acalmando. A coisa estava feita, devia pensar no futuro de seu casamento. Poderia agora confiar no marido? Tinha várias amigas divorciadas. A Jandira havia pegado o marido com a secretaria. Mas todas tinham profissão; passada a crise, seguiam a vidanormalmente em seus trabalhos. Maria Helena tinha doutorado. E ela? Havia sido preparada para ser dona de casa. Interrompera os estudos ao casar-se, sem terminar o segundo grau. Parecia-lhe estranha a ideia de uma separação. Benedito sempre foi um bom marido, amigo dos filhos. Seria esse caso suficiente para a dissolução de um casamento? Teria sido uma traição?
Depois, voltou o pensamento para o garoto. Não tinha culpa de ter nascido, é verdade. Quase se arrependeu do modo como o havia tratado. Foi a surpresa que a tinha deixado desnorteada. Pensou nas inúmeras crianças sem um pai, jogadas neste mundo, perdidas pelas ruas. Pensou nos anjinhos, arrancados cruelmente do ventre das mães. Nesse ponto, a marido havia sido decente, assumiu o erro, amparou o filho. Mas por que não lhe confessou tudo no começo?
Sabia que a solução do caso dependia dela. Havia dois sentimentos antagônicos em sua alma: compaixão e ódio. Ódio e compaixão. Qual dos dois iria alimentar?
Deixou o quarto. Aí o estômago lembrou-lhe que não havia almoçado. Lambiscou um pedaço de aipim frito, um pouco de maionese, recolheu a louça, raspou os pratos com uma faca. Enquanto lavava a louça, a raiva foi esfriando. Imagens do garoto iam surgindo em sua mente.
À tardinha, o marido chegou em casa. Entrou devagar, a medo, encolhido. Pensava em apanhar suas roupas; iria para um hotel qualquer, pelo menos até passar a tempestade.
Encontrou a mulher na porta do quarto. Ainda arredia, machucada.
– Qual o nome dele? – perguntou.
– Nome de quem?
– Do seu filho, idiota. Oras de quem? Cumpra sua responsabilidade.
E depois de um silêncio, resoluta:
– Traga ele um dia para almoçar com a gente.