Rascunhos da cidade – entrevista a Jura Arruda

O que vamos ler a seguir são trechos de transcrições de um vídeo pertencente à série RASCUNHOS NA CIDADE, feitos pelo colega acadêmico Jura Arruda em 2014, na qual entrevista 12 escritores de Joinville e região. A Entrevista com Raquel S. Thiago pode ser assistida na íntegra no You Tube, no endereço: 

https://www.youtube.com/watch?v=ZVqYxLurC7k

 

HISTÓRIA E ROMANCE HISTÓRICO

 

A história é outra coisa. A história é buscar os fundamentos teóricos e é uma interpretação da realidade. Então, no momento em que você vai fazer essa interpretação, você precisa conhecer muita coisa. Você precisa ler muito para interpretar essa realidade. E nem sempre a gente interpreta da forma que os outros aceitem. Por isso é que a história é difícil, porque eu posso interpretar de uma forma, outro pode interpretar de outra, e um terceiro de outra…

E, para me precaver dessas oposições, eu me fundamento teoricamente. Então… isso é ser historiadora.

A história é a interpretação do fato. O fato em si não é história. Mas a história não vive sem o fato. Deve ser uma tentação para quem tem queda para a literatura. Eu gostaria muito – já tentei – fazer literatura histórica. Isso não é proibido. Já li romances históricos que eu adorei.

Às vezes eu estou lá pesquisado uma coisa e penso: Puxa, isto aqui num romance ficaria ótimo! Dá uma tentação. Mas desde que você diga que aquilo é um romance histórico e que há uma certa licença científica para você poder deturpar, alterar, que aquilo não é exatamente história.

 

 

COLONIZAÇÃO

 

Nenhuma colonização é um conto de fadas. A colonização da Colônia Dona Francisca foi importante, foi necessária e foi muito bem-sucedida. Ela foi a realização de uma empresa particular capitalista, não foi uma iniciativa do governo; ao passo que a maioria das colonizações, aqui em Santa Catarina, foram iniciativas do governo.

A nossa colonização foi uma iniciativa particular, houve muita dificuldade financeira, mas eu acho que foi um empreendimento vitorioso.

Agora, realmente não foi um conto de fadas. Até existe aí uma vertente, sobre a qual eu já escrevi em jornal. Os europeus, mesmo aqueles mais simples, aqueles que vinham do campo, estavam acostumados com a realeza. Não existia república.

A república, a democracia republicana, começou a aparecer na Europa bem quando eles vieram para cá. Então eles estavam habituados com as figuras do rei e da rainha. Tinham aquele mito do paizinho e da mãezinha. Tinham uma crença muito forte que as pessoas que estavam no poder tinham o direito divino de governar.

Aceitavam que aquelas pessoas tinham sido mandadas por Deus para governar. Assim, o colono, ao chegar aqui, custa muito a se desprender das figuras do rei e da rainha. E começa, por aqui, a se criar mitos por causa disso. Inclusive o palácio dos príncipes é um mito muito forte. Ele foi construído para ser a casa do procurador do príncipe de Joinville, o francês Louis François Léonce Aubé, talvez hospedasse os príncipes, se eles um dia viessem. E alimentou-se esse mito, que um dia o rei viria…

Quer dizer, há um pouquinho de conto de fada, com um pezinho nesse mito do rei e da rainha.

 

 

CONFLITO E ESCRAVIDÃO

 

E outra coisa: a história não se faz sem conflito. Porque é o conflito que toca a história para a frente. A história é mudança. História que não for mudança, não é história, ela está ali engessada.

Veja um cemitério, por exemplo. Ali não tem mais história, ali não tem mais mudança, ali ficou!

Veja bem, quando vieram demarcar as terras da princesa, tiveram que demarcar em terras de São Francisco. E essas terras tinham proprietários, que eram aqueles fazendeiros descendentes de luso-brasileiros e que tinham sistema escravista.

E aí vem outra questão: havia as fazendas dos portugueses e seus descendentes, o sistema português colonial era escravista. Mas, quando a colônia veio para cá, a escravidão de negros ali foi proibida.

Nas terras onde ficaram os colonos, não houve escravidão. Mas isso não quer dizer que ali no Bucarein (bairro de Joinville), na fazenda do Coronel Vieira (fazendeiro que chegou em Joinville em 1826, ao passo que os colonos só chegaram a partir de 1851), não houvesse escravo, porque ali não era território da colônia, era território brasileiro nas mãos de um senhor escravista.

A demarcação da colônia, que foi feita por Jerônimo Coelho (tenente-coronel do Corpo Imperial de Engenheiros), foi contornando essas propriedades dos fazendeiros. No pé da Serra Dona Francisca, por exemplo, havia a propriedade de João Gomes de Oliveira, que tinha escravos.

Mas apesar dessa vizinhança escravista, não houve escravidão na Colônia Dona Francisca.

Foram tempos difíceis, de apreensão e de desorganização da agricultura familiar praticada pelos colonos. Não havia cavalos para o transporte de mercadorias e para os trabalhos na roça (o que a mão-de-obra escrava teria resolvido facilmente).

O convívio ocasional com os negros escravos era bom. Há inclusive o caso de Antonio Nero, um escravo que ajudou a salvar muita gente da colônia, por causa de uma epidemia que grassou quando da chegada de navio. Os colonos ficaram extremamente agradecidos a ele, prestaram-lhe uma grande homenagem e compraram a liberdade de Antonio Nero a seu proprietário, fazendo-o forro.

Havia inclusive famílias que adotavam filhos de índios ou filhos de negros. Até há um caso muito engraçado. Em Pirabeiraba, um casal alemão criava um negrinho pequeno. Chegou o coletor de impostos e bateu à porta da casa. O menininho atendeu. O homem perguntou: “Tem gente em casa?” O pretinho voltou-se para dentro e gritou, em perfeito alemão: “Papai, tem um caboclo aqui que quer falar com o senhor!” Imagine o susto do caboclo.

 

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