Receita de canha com o Jerê (Joel Gehlen)
Receita de canha com o Jerê
Crônica Joel Gehlen, AN, 9 de fevereiro de 2017
O Jerê foi um repórter que influenciou sucessivas gerações de jornalistas lá em Londrina e toda uma rapaziada aqui em Santa Catarina. Tinha um modo desconcertante de ver o mundo. Vim com ele para Joinville e muito dessa cidade que me habita hoje foi definido pelo seu olhar incomum. Para ele, mesmo as coisas mais que óbvias podiam ser reinventadas a partir da perspectiva que lhe atribuíssem. Estou aqui olhando para a cara dessa manhã que chega, como se ela é que se olhasse diante do espelho e lembrando uma das cenas mais recorrentes e geniais do Jerê.
Muitas vezes, acompanhei-o em botequins para lá de suspeitos. Poderia simplesmente ser mais um trago no balão, tão rápido e automático quanto emborcar o copo já tirando o dinheiro amarrotado do bolso e ir-se embora. Com o Jerê, isso seria um sacrilégio. Ele já adentrava a birosca chamando o distinto por um nome qualquer que inventava assim que olhava o tipo do atendente. Isso quando o bar não se chamava com a alcunha do próprio. Com aquela sua cara de espanto, um meio sorriso pendurado no lábio, os cabelos sempre alguns dedos acima do corte e os olhos crescidos demais, o Jerê era daqueles que fazem amizades instantâneas.
Batia com a mão espalmada sobre o tampo e mandava o pedido: “Ô, seu Nenéca, o senhor tem aí uma garrafa de pinga?” Armado em receio, o cara respondia espichando o olho para a prateleira repleta e variada de canjebrina. Ficava encafifado se estava sendo mangado e mudava o palito de dente para o outro lado da boca. Aí, o Jerê pedia, dispondo o indicador e o polegar na medida do tradicional copo de aguardente.
Quando o botequeiro trazia a garrafa pegada pelo pescoço e o copo na outra mão para servir, com aquele pano encardido no ombro, o Jerê tascava outra indagação: “E fernêt, o estabelecimento tem fernêt?” Dizia isso caprichando no acento final, que punha um ar de mistério na pronúncia. Aí o cara ergue um cenho mais que o outro, muda outra vez o palito, joga o pano para o ombro oposto e vai se esticar na prateleira mais alta onde está o litro escuro e amargo, que serve meio a meio com cachaça. Enfim, o Jerê bebe em três goles espaçados, já enfiado em animada conversa. Da outra vez, seria recebido com um largo sorriso e um abraço esticado entre as garrafas em cada mão, como se faz com amigos de longa data.