Setenta e cinco (Fiuza)
Setenta e cinco
Olhando pelo lado contrário do binóculo, cada vida parece igual às outras, monótona e repetitiva, como em um formigueiro. Mas se virarmos o binóculo, aí sim, ela escancara os seus segredos e se mostra radicalmente única.
Chegando aos 75, fico aqui girando em torno do que me ocupa nesta idade: o passado, a velhice, e a despedida. Cada um deles traz a sua carga de angústia, mas garanto que estou confortável. Penso neles com grande leveza.
Gosto muito de viver. Sempre gostei. Tenho e tive uma vida animada, cheia de aventuras e alegrias. Eu me senti amado pela família e por amigos. E os amei. Viajei muito, li de tudo, escrevi um pouco. Fui reconhecido, bastante até. Sempre gostei do que fiz e o fiz com paixão. E me diverti também, com situações inocentes e com outras nem tanto.
Joguei bola, toquei violão (mal) e cantei no banheiro. Tive minha turma, brinquei no carnaval, fui ao cinema, torci no futebol. Apreciei bons restaurantes, curti um bom uísque. Vivi o crescimento dos filhos e encantei-me com o dos netos. Ri muito junto com minha mulher.
Tive também momentos ruins, vivi doenças, perdas, injustiças, traições. Entendi, por fim, que tudo isso faz parte da nossa trajetória, compõe a história. No fundo, a vida tem sido generosa, tem valido a pena.
A Medicina também me proporcionou muito. Foi profissão, desafio e possibilidade. Além disso, trouxe consigo algo que fez a diferença. Foi a ciência, que me fez repensar os conceitos, questioná-los. Descobri então o que havia de melhor em mim. Nasceu uma noção nova do sentido da vida, uma ideia do que era certo ou errado, um entendimento do que eu poderia, de fato, saber. Fiquei mais seguro. Pude ajudar mais meus pacientes e reestruturar a minha vida.
“Envelhecer é uma merda! ”, disse a humorista e a plateia explodiu em risos. Eu também ri, mas vou dizer a minha versão: Não é!
Se a idade me tirou a força, compensou com a pacificação. Se limitou o corpo, facilitou as coisas da alma. A juventude exigiu demais! A velhice concedeu.
Quando a idade chegou, a ansiedade diminuiu. Não importa que o espelho insista em judiar de mim ou que eu tenha que tomar um monte de comprimidos. Já não preciso mais provar nada. Posso agora curtir a minha irresponsabilidade. Espio os filhos naquela luta que eu já conheci, mas sei que esta agora é a deles. Eu até empurro, dou um sorriso e me recolho.
E agora, aos 75, qual é o meu futuro? Quais são os meus planos? Não é um dos meus temas. Eu me recuso a planejar qualquer coisa além dos próximos 30 minutos. Depois disto, estou bem com todas as possibilidades. Se não me pesarem, que venham alguns anos a mais. Se pesarem, que não venham. Os atuais já me parecem suficientes.
É que este processo todo me levou a repensar também a despedida, isto é, a morte e o morrer. E foi para melhor. Penso agora que morrer não é coisa de meter medo em ninguém. Não deveria ser drama nem para quem vai, nem para quem fica. Imagino, por exemplo, que a sensação ao morrer deva ser algo até neutro, como dormir fundo, sem sonhar. Li uma vez que “a morte não é nada, pois quando estamos vivos, a morte não está presente; quando ela está presente, nós é que não estamos mais”. Conclui que, se é muito bom viver, deve ser simples morrer.
Depois, a vida já me premiou, em tempo e qualidade. Para esticar mais minha estadia aqui, então, só se fosse com vida boa. Eu gostaria que os meus aceitassem esta minha preocupação e desejo. E que, quando nos separarmos, encarem tudo com serenidade, recordando os momentos bons que vivemos juntos. E rindo ao se lembrarem dos mais engraçados.
Agora, sim, vou parar com esta conversa de velho e curtir os próximos 30 minutos, como um garoto animado. É que vem aí um bom vinho e, com ele, um cordero patagónico. E eu quero comemorar este meu cumpleaños de 75. Daqui de Bariloche.
Hasta pronto,
Ronald