Te espero do outro lado (David Gonçalves)
TE ESPERO DO OUTRO LADO [conto]
David Gonçalves
Na mesma noite em que Tonico Cospe-Fogo morreu pela primeira vez, havia um velório na casa da fazenda. Um peão picado por uma cascavel. Meia dúzia de pessoas guardava o finado e já passava das onze horas, perto da meia noite. Foi, então, que a polícia de Quadrínculo, com o reforço da região, fez o cerco da casa, sem saber do velório, e começou o cheiro de pólvora. Tonico, o proprietário, e seus capangas revidaram. Foi um pác-pác-pum sem parar, nunca visto no vale. Os bons peões que guardavam o companheiro morto, numa sala no segundo andar, assustados, não sabiam para onde correr, aterrorizados. O que se viu foi uma batalha sem tréguas.
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Tonico nunca fora boa gente. Cheio de ambição e sem medo, invadia terras e as apropriava, com recibo e escritura passados em cartório. Tinha má fama, arruaceiro e frequentador do meretrício. Sua fortuna tinha cheiro de pólvora e de morte. Quem tinha juízo, aquietava-se; quem não tinha, logo sumia. O rio Ivaí tem provas disso. Sabe-se lá quantos cadáveres foram despejados em suas águas barrentas! Mas o homem, sempre insatisfeito, queria muito mais e ninguém aparava suas vontades.
Mas, num baile de colônia, fim da colheita de café, por um diz-que-diz, matou o filho do delegado, por rabichos de mulher. Fez-se a encrenca. Quieto, o delegado enterrou o filho. Vingança? Não dizia nada. Aquilo não podia ficar assim, diziam. Não podia mesmo. Tonico Cospe-Fogo desfilava pela cidade em seu potro ruão, folgado, sem crer em vingança. O delegado era frouxo. “Deixa a vida seguir”, dizia o delegado. O apressado se azara. Então, certo dia, chegou na cidade reforço de tropa nunca visto, se supetão, e algo estava para acontecer.
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A casa grande estava cercada. “Não me pegam vivo!” – disse aos capangas. Escapar, não havia jeito. Afastou-se da janela e vestiu um casaco. Ele e sua gente estavam cercados. No segundo andar, o silêncio se fez no velório. Alumiavam a casa à procura do alvo. Não havia como fugir. “Saiam todos, já” – a ordem do delegado. “Se entregue, Tonico! Chegou sua hora!” Não houve resposta. Então, o tiroteio começou, estilhaçando as vidraças e o madeirame.
O lamento que vinha do velório, lá de cima, havia parado, como se cortado a navalha. Na escuridão, Tonico estampou um riso cínico, espremendo os lábios. Os capangas, molengos, não iam aguentar. O pessoalzinho do velório saiu no terreiro com as mãos para cima, borrados de medo. Em seguida, alguns capangas. “A gente há de morrer por aqui”, disse um deles, voz engasgada. Tonico revidou: “Cuide dos seus cueiros, que eu cuido dos meus.” E o sujeito logo se entregou, sem armas. De Tonico, nem sombra. O delegado não amoleceu: “Pipoquem, deixem a casa uma peneira”. Tonico, encolhido no rés do assoalho, lagarteava escada acima, sob um zumbido de vespas assustadas. Remoía: “Será que essa gente espera que eu apodreça na cadeia?” Estava de barriga colada ao chão, arrastando-se como cobra. Evitava contrapor o fogo. Estava debaixo da mesa do defunto. Apontou a arma para o lampião pendurado no teto e o lampião estourou como um balão. Tinha que fazer alguma coisa. Mas o quê? Ao redor da casa, o acirrado tiroteio. De repente, uma parte da casa pegou fogo. O estalar da madeira sobrepôs ao tiroteio. “Acuda o morto, acuda o morto!” – pediam os peões. Os soldados entraram na casa e conseguiram tirar o caixão, que ficou sobre a relva do cercado de porcos, enquanto peões e soldados, com baldes de água, tentavam apagar as chamas.
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Três meses depois, apareceu na fazenda o irmão gêmeo de Tonico Cospe-Fogo. Todos se assustaram. Ninguém sabia, muito menos suspeitava, que ele tinha irmão gêmeo. Seria também ferrabrás? Mostrou os documentos. Chamava-se Marcolino. Cara e corpo do finado, que morrera torrado. Diferença? Só a barba e o bigode. Tomou posse dos negócios e colocou ordem na peonada. Esteve por lá a polícia, o delegado, o detetive. Não havia nada a fazer. Tonico estava morto, bem enterrado. Tudo era passado. A vida seguiu o seu curso. Diferente, Marcolino era boa pessoa, cumpridor das leis, fiel à igreja, e bondoso nas doações para as festas. O povo não se cansava de louvar suas atitudes. Nem se lembrava do terrível irmão. Nesta paz, Marcolino comandou os afazeres por vinte e sete anos, até que veio a falecer de câncer nos pulmões. Fumava demais, como o finado.
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O delegado, velho e aposentado, recebeu a seguinte carta enviada de outra cidade, sete dias após o enterro do benemérito homem:
“Cumpre a mim comunicar vossa autoridade que, finalmente, morri. Da primeira vez, fui enterrado no lugar do peão picado pela cascavel. Como isto aconteceu? Esperteza, delegado. No meio do tiroteio, me pus no lugar do cadáver e dei três tiros nas laterais do caixão. Joguei o cadáver no fogo e fechei o tampão. Pressupus que as chamas não alcançariam o caixão. E fui salvo, e fui enterrado às pressas, e tão logo alguns minutos ressuscitei. E vivi estes vinte e sete anos debaixo de suas barbas. Desta vez, com as dores insuportáveis desta doença maldita, tenho que ir. Te espero do outro lado – Tonico Cospe-Fogo.”
O delegado, envelhecido, estava atônito, não sabia o que dizer.