Tia Meméia – Uma história de felicidade (Milton Maciel)
TIA MEMÉIA – Uma história de felicidade
Extraído de:
“HELLO, TCHÊ – Contos do Norte e do Sul”, Milton Maciel – IDEL, 2013, 200 pg
Ela era realmente uma figura sui generis. Não havia, não poderia haver nada igual na nossa cidade pequena. E tão sui generis era que eu insisto em dizer NADA – e, não, ninguém, o que seria o óbvio. Mas Tia Meméia era mesmo única no gênero. Provavelmente, vocês vão me dar razão também.
A começar pelo nome: Meméia. Claro que esse não era o nome dela. Esse é o nome da bruxinha desastrada de Stanley, a Little Itch (Coceirinha), que no Brasil nós ficamos conhecendo através das histórias em quadrinhos da Luluzinha.
Meméia, ainda criança, era a aprendiz de bruxa de sua tia malvada, a bruxa Alcéia. Acho que a pessoa que deu o apelido à Tia Meméia, não só tinha lido muita Luluzinha, como sabia muito bem o que estava fazendo.
Porque a Tia Meméia tinha fama de ser bruxa. Muitas pessoas tinham medo dela, chegando algumas a garantir que ela realizava terríveis rituais de magia negra. Mas essas pessoas eram todas adultas.
Porque, entre as crianças, Tia Meméia tinha uma enorme popularidade. Era a tal da bruxa aparecer pela cidade e elas corriam a cercá-la, a conversar com ela, ouvi-la contar histórias e mais histórias, brincar de roda e esconde-esconde com elas, pular amarelinha, ensinar canções infantis.
Algumas mães ficavam apreensivas, proibiam suas crianças de se aproximarem da bruxa malvada, mas era em vão. As crianças desobedeciam, fugiam, parecia que adivinhavam quando Tia Meméia estava por perto. Isso deixava aquelas mães ainda mais aflitas, crentes que aquilo era um sortilégio, um mau encantamento para atrair crianças, sabe-se lá com que malévola intenção!
Uma outra coisa que chamava atenção em Tia Meméia é que os animais também tinham um verdadeiro fascínio por ela, tanto ou mais do que as crianças. Também eles a cercavam e seguiam por onde ela fosse. Não só os cães que estavam soltos pelas ruas, mas os que estavam nas casas, limitados pelos muros e portões. Estes procuravam, aflitos, escapar para juntar-se ao grupo de Meméia.
E, claro, isso deixava os moradores adultos ainda mais convictos que aquela mulher era mesmo uma feiticeira malvada, usando magia negra para atrair seus animaizinhos inocentes, para depois, com toda certeza, submetê-los a sacrifício em horrendos rituais de feitiçaria.
Só que, apesar de toda essa má fama com os adultos, nunca ninguém soube, em toda a cidade, que um só animal tivesse desaparecido. Assim como fugiam, horas depois eles estavam de volta, mostrando grande contentamento e muita fome e sede.
Eu era um moleque de onze anos quando mudei para aquela cidade e me tornei, imediatamente, um dos fãs de carteirinha de Tia Meméia. Ela, desde o começo, mostrou uma atenção toda especial comigo. Achei que era por minha condição de novato, mas fiquei com receio que as outras crianças ficassem com ciúmes de mim. Mas não ficaram.
Com o tempo passei a perceber a razão disso: perto de Tia Meméia, era impossível ter sentimentos ou até mesmo pensamentos ruins. Havia nela algo que nos levava a ver sempre o lado bom das coisas. Me dei conta disso uma tarde, quando duas meninas estavam se xingando quase ao ponto de se pegarem aos tapas. Pois, quando Tia Meméia se aproximou, elas mudaram completamente o tom de voz e saíram correndo, de mãos dadas, em direção a ela!
Tia Meméia era uma figura muito diferente mesmo: gorducha, bonachona, usava estranhos cabelos vermelhos armados em longas tranças e umas roupas compridas e largas, extremamente coloridas e berrantes. Usava sempre uma enorme sombrinha, multicolorida como um arco-íris, para proteger do sol a sua pele extremamente branca, mas um tanto avermelhada, que tinha um sem número de pequenas sardas espalhadas pelo rosto.
Ela morava numa casinha pequena, num terreno enorme na saída da cidade, com suas companheiras: uma cachorra bege, chamada Fulustreca, e uma égua branca, chamada Pombinha. Estranhamente, quando ela saía, nem mesmo a Fulustreca costumava segui-la, embora o portão da frente estivesse sempre aberto. Aliás, como vim a descobrir depois, a porta da casa nunca era trancada e as janelas permaneciam geralmente escancaradas, estivesse ela em casa ou não.
Bem, aí morava, para mim, não só a Tia Meméia, mas também o maior dos mistérios. Eu tinha uma grande vontade de entrar na casinha dela. Mas as outras crianças não tinham. Convidei diversas delas para tentarmos uma visita surpresa, de bisbilhoteiros mesmo, mas elas nunca se interessaram. A maioria nem sabia onde ficava a tal casinha.
Então eu resolvi aparecer lá sozinho. Uma certa tarde, em que Tia Meméia não apareceu na cidade logo depois do horário do almoço, como usualmente fazia, não tive dúvida. Inventei qualquer coisa em casa e saí apressado, quase correndo, só parando para pedir informações a respeito do lugar onde queria chegar.
Em coisa de vinte minutos eu estava lá. Vi de longe a Pombinha pastando solene no amplo gramado atrás da casa. Mas estaquei apreensivo, pois acabara de avistar a Fulustreca, que avançava calmamente em minha direção. Fiquei com medo que ela latisse ou, quem sabe, até tentasse me morder. Nós nunca nos tínhamos visto, eu apenas sabia da existência dela através de Tia Meméia.
Quando vi aquela cachorra de porte médio, de cor bege claro, caminhando para mim, fiquei paralisado junto ao enorme portão escancarado. Mas, para minha enorme surpresa, Fulustreca, quando chegou a dois metros de mim, começou a abanar o rabinho e a me fazer festa, emitindo pequenos ganidos que me pareceram de contentamento. Achei aquilo incrível e ganhei então coragem de me aproximar mais da casa. Fui andando agachado, como um espião infame – exatamente o que eu era naquele instante.
A porta da casa estava aberta, a janela ao lado também. Enfiei cuidadosamente a cara através dela, para ver o que tinha lá dentro. Era a janela da sala e ali tudo o que havia eram livros, livros e mais livros: nas estantes, no sofá, sobre as cadeiras, sobre um tapete velho no chão. Nada de apetrechos de bruxa, que é o que eu receava encontrar em minha investigação. Apurei bem o ouvido, tentando deduzir em que peça da casa poderia estar Tia Meméia. A casa era pequena, só podia ter, no máximo, dois quartos.
Foi quando ouvi, distintamente, a voz de Tia Meméia conversando com Pombinha, a égua branca, no quintal. E notei que Pombinha como que respondia, porque cada vez que Tia Meméia parava, dali um pouco a égua emitia uns relinchos suaves e longos.
Esquisito aquilo, mas na hora fiquei aliviado, porque isso significava que eu podia entrar na casa. Hesitei só um pouquinho, pensando no mau-caratismo do meu gesto, mas já que eu tinha chegado até aquele ponto, achei que não podia mais recuar. E entrei na casa. Que percorri, igualmente agachado e o pé ante pé, peça por peça.
E outra vez, agora para meu claro desapontamento, nenhum sinal de apetrechos de bruxa. Nenhum caldeirão, frascos com poções ou asas de morcego, nenhuma gaiola com corvos ou outros bichos, nem mesmo um gato preto, acompanhante fundamental de uma bruxa que se preze. Nada!
Para variar, mais um monte de livros espalhados nos dois quartos. Havia também uma velha máquina de costura, que foi o que consegui encontrar de mais anormal. Finalmente entrei na cozinha, pequena e escrupulosamente limpa, com panelas areadas rebrilhantes penduradas numa parede. Nada de coisas de bruxa também.
E então a grande surpresa e o grande abalo: através da janela aberta da cozinha eu pude divisar Tia Meméia no quintal. Em frente a uma fogueira de lenha, mexendo um enorme caldeirão com uma grande pá de madeira. Ela mexia e cantava, aí parava a cantoria e conversava de novo com Pombinha – e a égua respondia, tenho certeza!
E Tia Meméia mexia e remexia o caldeirão sem parar. E dele saía um vapor esbranquiçado e abundante, o que me assustou ainda mais.
Fiquei paralisado de medo. E de decepção. Justo eu, que gostava tanto de Tia Meméia, acabara de descobrir que ela era, realmente, uma bruxa! Sua atividade ao caldeirão não deixava qualquer dúvida.
Céus, eu estava correndo um grande perigo! Se ela me descobrisse e soubesse que eu conhecia agora o seu macabro segredo, certamente ela não ia deixar barato. Fiquei gelado ao pensar no que ela poderia me transformar: num sapo, com toda certeza. Mas podia ser ainda pior: numa cobra peçonhenta. Ou numa barata asquerosa. Ou pior ainda, num monte de esterco da égua. Comecei até a sentir meu fedor de esterco, foi horrível.
Numa tentativa desesperada de fuga, me arrojei de barriga no chão da cozinha e comecei a rastejar para a sala. Meu susto aumentou: Puxa, será que já estou começando a virar cobra?! Mas, na soleira entre a cozinha e a sala, Fulustreca me contemplava imóvel. Vi que agora ela não sacudia o rabinho. Pronto, é agora que eu ia virar uma cobra estraçalhada por um canino!
Num gesto de desespero, arreganhei meus dentes, para a cadela ver o tamanho que já deveriam ter, àquela altura, as minhas presas cheias de veneno mortal. Fulustreca não mostrou o menor medo. Continuou a me observar com aquela cara de quem está olhando um doido rastejar pelo chão.
E nesse momento eu quase tenho uma síncope fulminante, o maior cagaço da minha vida até então: Lá do quintal, a voz de Tia Meméia, com seu timbre agradável, nítido e quase musical, falou MEU NOME!
– Carlinhos, venha aqui no quintal, venha ajudar Tia Meméia.
Eu estava lascado! Tinha sido descoberto! Como, se eu tinha certeza que não me expusera à bruxa? Mas o fato é que ela, confirmando sua condição de feiticeira, tinha sido capaz de me ver ou me pressentir, mesmo estando o tempo todo no quintal, a uns dez metros e de costas para a casa, onde eu me esgueirara no início, corajoso e intrépido como 007.
Que remédio, era melhor atender à sua ordem. Levantei do chão da cozinha. Notei que ele estava estranhamente molhado no lugar onde eu estivera. Olhando melhor, vi que minha calça curta também estava molhada na frente. Céus, eu tinha me mijado de medo! Ia passar a maior vergonha com a bruxa, antes de ser transformado em cobra ou cocô.
Mas, afinal, até mesmo uma vergonha dessas fica desimportante quando você está para enfrentar a ira de uma bruxa má. Mesmo assim, tive um certo pudor. Passei a mão num pano de secar louça e o segurei displicentemente na frente do lugar envergonhado. E fui atender ao comando da feiticeira, morrendo de medo do que ia ver dentro do enorme caldeirão. Pedaços de animais ou pedaços de crianças al sugo?
Fui me aproximando em câmara lenta, tremendo de medo, pensando em manter os olhos fechados até o fim. Foi quando Tia Meméia falou com sua voz alegre de sempre:
– Que bom que você resolveu me visitar justo hoje, Carlinhos. Bem agora quando eu estou precisando de ajuda para mexer esse tacho pra mim. Venha, meu filho, é só por uns dois minutinhos, enquanto eu viro o tacho nas formas.
Tacho?! Formas?!
Resolvi abrir os olhos. O caldeirão não era o dos filmes de bruxa, não era alto e preto. Era igualmente grande, mas era baixo e de cobre brilhante. Surpreendentemente, o cheiro, que eu agora podia sentir, era extremamente agradável e não me era de todo estranho. E o que Tia Meméia falou então me fez cair das nuvens:
– Pegue a pá e mexa como eu estou fazendo, tem que fazer força, porque eu já dei o ponto e agora a massa está muito pesada. E continue mexendo enquanto eu viro o tacho e faço a massa escorrer para as formas. E aí procure usar a pá para remover a massa do lado do tacho, enquanto ela escorre. Ah, esta pessegada de hoje vai ficar um espetáculo!
Peguei a pá e comecei a mexer a massa do doce de pêssego com determinação e alegria. Meus olhos se encheram de lágrimas. Não me importei, podia botar a culpa no vapor. Mas eu estava comovido e alegre até às lágrimas, porque a minha boa, a minha querida, a minha adorada Tia Meméia não era uma bruxa malvada! Era uma doceira! Eu tinha acabado de descobrir como é que ela ganhava a vida.
Minutos depois eu estava sentado na varanda da frente da casa com minha Tia Meméia. MINHA tia! Ela havia colocado para esfriar uma pequena quantidade de pessegada e agora nós dois comíamos o doce com enorme deleite. Que doce maravilhoso! Eu nunca tinha comido algo tão bom assim… Repeti mais duas vezes, Tia Meméia me servia com evidente satisfação, enquanto passava os dedos carinhosamente entre meus cabelos escorridos. E aí é que veio a surpresa mesmo, tudo virou outra vez na minha cabeça:
– Meu filho, agora você vai no banheiro, toma um banhozinho rápido para tirar esse xixi. Aí você sai enrolado na toalha que eu já vou estar lavando e pondo pra secar essa sua calça curta. O sol está bem forte, vai secar ligeirinho.
Senti minha cara inchar, de tão vermelha que deve ter ficado na hora. Ela sabia! Mas como? E então, como se ouvisse minha pergunta, ela disse calmamente.
– Carlinhos, eu sabia que você vinha aqui hoje, então resolvi antecipar em um dia a minha fabricação caseira de pessegada. Assim eu teria quem me ajudasse na hora H. Sempre tenho que fazer isso sozinha e isso me faz perder um pouco de massa.
Engoli em seco e gaguejei:
– A… a… senhora… a senhora SABIA que eu vinha aqui hoje? Mas como?
– Ora, criança, porque eu sou uma feiticeira, é óbvio. Ou uma bruxa, como eles dizem por aí que eu sou. Pois é verdade, a mais pura verdade.
Voltei a gelar. Um arrepio percorreu minha espinha e eu fiquei totalmente sem voz.
– Não precisa ficar com medo, meu filho. Eu sou uma bruxa, mas sou uma bruxa DO BEM. Eu só uso os meus poderes para ajudar as pessoas, alegrar as crianças, curar os animais, cultivar flores, verduras e frutas. Nós, as bruxas do Bem, temos Dedo Verde, sabe o que é isso?
Fiz com a cabeça que sim, mais aliviado, dedo verde é um dom para fazer as plantes crescerem fortes e saudáveis, eu sabia, tinha lido o livro.
Fui tomar meu banho, Tia Meméia foi lavar minha calça e colocá-la para secar. Durante o curto tempo daquele banho, eu coloquei as minhas ideias e sentimentos no lugar. Sim, não havia mais dúvidas para mim: Tia Meméia era mesmo DO BEM, aliás era mais do que isso, era da Alegria, da Bondade, da Compaixão.
Tia Meméia era a coisa mais linda e mais fofa que eu já tinha visto em toda a minha curta vida. Eu adorava aquela mulher, simplesmente! E me decidi: eu ia grudar nela, ia ficar o mais próximo dela que eu pudesse. E naquele momento me deu um enorme desejo de ser como ela, exatamente como ela era.
Saí enrolado na toalha e ela me levou para a varanda de novo. Sentei na mesma cadeira e ela então me falou:
– Carlinhos, hoje todas nós estávamos esperando por você, meu filho. Não é verdade meninas?
Fulustreca sacudiu o rabinho e pulou para o meu colo. Pombinha caminhou até mim, desceu a enorme cabeça até tocar o meu peito e esfregou-se nele três ou quatro vezes. As meninas concordavam!
– E sabe por que isso tudo aconteceu? Porque você foi a única criança desta cidade que teve vontade de vir aqui. E sabe por que nós já sabíamos que você vinha e estávamos à sua espera?
Balbuciei um tímido e ansioso não. Tia Meméia arrematou, então:
– Porque VOCÊ É UM DE NÓS, MENINO! Você é um bruxinho também. E nós viemos para esta cidade, alguns anos antes de você, para preparar as coisas para a sua chegada. Porque você não é só um bruxinho, você é um dos grandes na hierarquia, meu bem. E nós estamos aqui para acelerar agora a sua preparação, a sua longa formação. Você vai me suceder em tudo o que eu faço para a Natureza neste lugar. E depois, quando estiver pronto, vai partir para as suas maiores missões. Entendeu?
Sim, eu tinha entendido TUDO. Não só o que ela havia falado naquele instante, como também tudo o que viria depois. Ela ia falando e eu ia vendo tudo com uma clareza infinita. Sim. Eu era um deles. Eu era como Tia Meméia, como Pombinha, como Fulustreca. E vi que eu viria morar ali com elas, a partir do dia seguinte.
Ao ir embora hoje, eu levaria uma caixeta de pessegada para minha família. E meus pais e irmãs a comeriam e adorariam. E o filtro mágico faria seu benéfico efeito. Então, já no dia seguinte, viriam todos visitar Tia Meméia. E a amariam. E compreenderiam que tinham que trazer meus pertences com eles, numa malinha.
Sim eu era um deles! Ali era o meu lugar. Com minha Tia Meméia. Tudo ia mudar na minha vida: Enfim eu ia começar a ser eu mesmo!