Um milagre de Natal (Milton)

UM MILAGRE DE NATAL  – conto  
MILTON MACIEL   

Lita e Carmen Lúcia eram mãe e filha. Lita, a mãe;  43 e 18 anos. O marido e pai deixara as duas há mais de 10 anos. Nunca mais deu notícias. Viviam da mão para a boca, numa pobreza de Jó, numa minúscula casinha alugada na periferia. Lita costurava para pequenas confecções e ateliês, Carmen Lúcia arranjava as costuras, buscava os tecidos, levava as peças prontas, o resto do tempo ajudava a mãe. Eram sós no mundo, nenhum parente em São Paulo, nada.

Uma manhã, quando voltava para casa com tecidos, Carmen Lúcia viu um rapaz com uma mochila bem no fundo do ônibus quase vazio. Ele tentava esconder que chorava. Carmen Lúcia era boa demais para ver aquilo e não fazer nada. Foi sentar ao lado do moço. Ao poucos conseguiu extrair dele sua história. Otávio. Estudava, pagava seus estudos e a pensão, o dinheiro que ganhava como garçom não dava para tudo. Acabava de ser mandado embora da pensão. A faculdade era muito cara, mas ele disse que preferia viver na rua a parar os estudos.

Quando chegaram ao ponto mais próximo à casinha delas, Carmen Lúcia fez o jovem descer com ela e levou-o até à mãe. Naquele mesmo dia o rapaz começou a morar com elas. Ele estudava de manhã e de tarde, trabalhava à noite todos os dias, sem descanso algum. Elas também não tinham descanso. Um dia, cinco meses depois, o rapaz chegou radiante: tinha conseguido transferência para uma faculdade em outra cidade, onde teria bolsa de estudos integral. Despediu-se, escreveram-se umas poucas cartas e, meses depois, quando elas tiveram que mudar de casa, perderam todo o contato.

A custo, Carmen Lúcia completou o colegial. Depois, não pôde seguir os estudos. O trabalho era muito, a paga era pouca, entravam madrugadas adentro. O aluguel subiu muito, a paga diminuiu ainda mais, precisaram trabalhar ainda mais. Tiverem que mudar várias vezes de casa, sempre para mais longe. Os anos passando, Lita não aguentou.

Seu coração fraquejou, foi internada às pressas  em um hospital público distante. Carmen Lúcia ficou com todo o fardo sozinha. O dia tinha só 24 horas, ela dormia só 3. Mas conseguia ir levando a vida, com a mãe sempre internada. Precisava transplante, estava na fila, muita a necessidade de cirurgia, pouca a esperança de consegui-la. A morte também esperava e, na fila dela, Lita tinha uma posição muito mais próxima.

Carmen Lúcia só podia visitar a mãe uma vez por semana. Hospital muito longe, condução muito cara, mais caro ainda um dia quase inteiro sem trabalhar, sem ganhar. Sorriam-se as duas. Tentavam enganar uma à outra, como se pudessem ter esperança. Não tinham.

Um dia, era 24, véspera de Natal, a filha chegou e não encontrou a mãe na enfermaria. Entrou em pânico, mal conseguia respirar, o pior?!… Da última vez Lita estava tão fraca!…

Mas Lita estava viva. E estava na UTI. E estava bem, garantiu-lhe a enfermeira da UTI. E tinha um coração novo! Carmen Lúcia mal podia acreditar. Um milagre! Mas como? Milagres não acontecem com gente como elas, há muito desaprendera de acreditar neles.  Aí quis saber de tudo, a enfermeira chamou sua chefe, as duas tentaram explicar, em meio à excitação total da filha:

O hospital tinha mudanças importantes, um novo subdiretor assumira na semana passada, parece que vinha com as costas quentes, com mais poderes. Decidia as coisas muito rápido, arranjava recursos, remanejava todos os setores, um fenômeno!

– Veja o caso de sua mãe, por exemplo. Nem bem conversou com ela, o homem saiu da enfermaria feito um azougue, mandou fazer os preparativos para a cirurgia enquanto ele ia pessoalmente atrás de um coração. E, inacreditável, poucas horas depois tinha arranjado um. Sua mãe foi operada imediatamente. Por ele mesmo, que é cirurgião cardíaco. Ele vem várias vezes por dia ver a paciente. E agora que ela já pode, eles conversam e riem que nem velhos amigos, você não pode fazer ideia.

Carmen Lúcia recebeu permissão para entrar na UTI. Sua mãe não estava entubada. Estava recostada, podia falar normalmente. Recebeu a filha com um sorriso de júbilo. Carmen Lúcia se aproximou exultante, mas com medo de provocar uma emoção muito forte na mãe, tão violenta como a que estava sentindo.  Falou com cuidado, quase sussurrando:

– Mãe!… Mãe, um milagre, mãe! Um milagre…

– Foi ele, minha filha. Ele. Com a graça de Deus, ele me encontrou aqui, jogada naquela enfermaria. Foi ele, filha.

– Ele, quem, mãe? Ele quem?

Lita limitou-se a apontar o homem alto, de jaleco branco, que olhava sorridente da porta de entrada. O novo subdiretor, o cirurgião, o milagre!

Carmen Lúcia voltou-se para ver e, apesar da pequena barba loira, que era nova, o rosto lhe era extremamente familiar. Só conseguiu dizer:

– Sim, é ELE! É ele. Otávio!!!

O Dr. Otávio Magalhães continuava sorrindo, imóvel na porta, esparramando em cima de Carmen Lúcia um olhar enternecido. Sim, era ele, o moço do ônibus, o hóspede gratuito que dividira a miséria com elas por cinco longos meses.

Então o médico entrou, anunciou a Lita que amanhã ela deixaria a UTI, que iria para um quarto particular. Particular?! Mas quem iria pagar, se elas não podiam?

– Como, quem vai  pagar? Ora, já está tudo pago. Tudo isso e tudo o que ainda vier pela frente.

– Mas como? – quis saber Carmen Lúcia? Tudo pago, como?

– Tudo pago por cinco meses maravilhosos, os melhores da minha vida, que eu vivi na casa de vocês, filando a comida de vocês, recebendo a bondade de vocês. Eu, um completo estranho. Isso não tem preço, por mais que eu tente, nunca vou poder retribuir à altura.

– Ora, meu filho, que bobagem…

– Eu perdi o contato com vocês, quando consegui voltar aqui, depois de uns meses, vocês tinham se mudado. Procurei como um louco, mas nunca mais. E aí acontece essa coisa maravilhosa, de repente eu entro naquela enfermaria e o que vejo: o rosto da minha santa protetora. Isso sim é que é milagre.

Então ele avança alguns passos, estaca em frente a Carmen Lúcia, toma-lhe as mãos nas suas:

– E hoje o milagre está completo: além da minha santa protetora, aqui está o meu anjo salvador!

O médico retirou sua carteira do bolso, dela extraiu uma fotografia e uma mecha de cabelos loiros, entregou-as a moça.

– Aqui estão, roubei do seu álbum, não tive coragem de pedir. Cortei o cabelo quando você estava dormindo. Durante estes anos todos, isso me manteve sempre conectado com vocês. Você, Carmen Lúcia, não saiu um só dia do meu pensamento. Estou solteiro até hoje porque sempre tive a esperança de reencontrá-la.

Completou-se o milagre de Natal!

Casaram-se três meses depois. Hoje Carmen Lúcia está a três meses de concluir a faculdade de Psicologia. E Lita, que mora com eles, toma conta do casal de netos. Máquina de costura? Nunca mais. O doutor não quer saber… Diz que faz muito mal para pessoas santas.

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