UM NEGÓCIO DIFÍCIL

Seu André alugou um Opala e fomos para Tequiné dos Montes. A estrada era ruim, uma reta estreita, escalavrada.  O Opala ia aos pulos.

Às vezes, olhava pra mim, ao lado, e se vangloriava:

– Vou mostrar pra essa caipirada como se vende apólices, moleque. Vamos colocar umas vinte no mínimo. Voltamos cedo, quero ainda jogar umas partidas de sinuca com os otários.

Eu não duvidava de nada disso. Seu André tinha um nhém-nhém-nhém de carioca, levava todo mundo na conversa. Era um sujeito moreno, de menos de 40 anos, bastos cabelos pretos (hoje acho que ele pintava). Camisa aberta no peito, onde pendia grossa corrente de ouro com um crucifixo pesadão. Um pente Flamengo aparecendo no bolso traseiro da calça. Logo fez amizades. Em poucos meses tornou-se tão conhecido e influente na cidade quanto o padre ou o delegado. Chegava num grupinho, juntava num abraço duas ou três pessoas:

– Conhecem aquela do “djiabo” guei?

Mangavam do seu sotaque. Levou apelido de Zé Carioca. Para mim, era seu André, meu patrão.

Marquinhos, o rapaz que atendia de madrugada no hotel Central, onde ele estava parado, fazia vista grossa quando recebia suspeitas visitas noturnas. Falou-se que até a mulher do hoteleiro, ó!

Seu André tinha saído do Rio por motivos políticos, costumava dizer. Os militares tinham assumido o poder e ele andava papando a mulher de um capitão. Sobrevivia, e bem, com a venda de seguros para uma grande companhia.

Depois que meu pai morreu, tive que me virar para ajudar a família e pagar os estudos. Tive sorte em arranjar essa boca com seu André. Era uma espécie de aprendiz. Acho que esse termo era conversa pra me pagar uma miséria. Mas era por pouco tempo. Eu despachava propostas pelo correio, arquivava as cópias numa caixinha de plástico, ali mesmo no hotel, ia comprar os maços de Hollywood e ouvia os gracejos que ele fazia sobre os “capiaus” da cidade. E eu, boca fechada.

Falava sempre que eu ia ao banheiro com uma revista de mulher nua na mão esquerda. E ria. O que ele queria dizer com isso?

– O dia que voltar pro “Riio” te levo junto, moleque. Vais conhecer a Dolores, uma égua pra transar. Eu envergonhado:

– Não fala isso, seu André.  Se eu sair daqui minha mãe enfarta.

– Enfarta nada. Deixa disso, moleque. Tá na hora de sair da saia da mamãe.

Acordei cedo, a mãe já tinha deixado pronta a mesa para o café. Me vesti e esperei na frente de casa. Seu André parou o Opala. Sobe, moleque. Antes disso, ele havia buscado referências em Tequiné, não era bobo.

– Procure o Zé da Farmácia, bem no centro. Ele conhece todo mundo por lá – aconselhou o Manecão do bar Danúbio.

Chegamos em Tequiné um pouco antes da hora do almoço. Viagem sofrida, só buraco e poeira. Seu Zé da Farmácia nos recomendou uma visita ao seu compadre, Coronel Damásio, que tinha um sítio a uns 15 quilômetros dali. Tinha posses, mas não era coronel coisa nenhuma, era assim chamado pelo seu ar grave e porque vivia de botas e chapelão na cabeça.

Após o almoço, numa biboca, rumamos pra lá. Seria o primeiro cliente. Não foi difícil achar o endereço, era uma estradinha reta que no final dava de cara com um morro. Seu André ia cantarolando uma música da Jovem Guarda, disse que era amigo do Roberto Carlos. Pois sim! Acredito. E eu sou amigo do Elvis.

O morro parecia bem pertinho, em cima de nós, mas era só impressão. Atrás dele havia uma serra azulada. Antes de chegar no morro, um portal com placa: Sítio Dona Terezinha. Era ali.

O sítio começava com uma pequena estrada, rodeada de pés de laranja, limão, goiaba, mamão… Seu André parou o carro e colheu uma goiaba verdolenga. Foi mastigando com uma mão no volante. No final da estrada havia um pátio e um casarão de dois andares, como aquelas casas dos senhores de engenho. Ao lado da casa, uma estrebaria. Um empregado fez sinal, paramos carro.

– Viemos falar com o coronel. Assunto de negócios.

O homem coçou a barbicha:

– O coronel tá sabendo?

– Só se você disser a ele.

– Hum… Estacione ali no pátio, na frente do prédio.

Seu André estacionou o Opala, tirou o pente do bolso, deu uma caprichada na cabeleira; depois puxou o maço de Hollywood do bolsinho da camisa, deu uma batidinha com o cigarro no painel do carro, e o meteu na boca, tacando fogo com o isqueirão.  Deu uma tragada funda. Por fim, fez um Em nome do Pai, e beijou o crucifixo do peito.

Veio nos receber o chapelão do coronel. Roupa simples, cigarrinho de palha entre os dedos. Seu André precipitou-se como se fosse abraçá-lo. Mas desarmou o abraço diante da postura séria, de militar.

– Boa tarde, coronel Damásio! (era uma estratégia chamar as pessoas pelo nome) Me chamo André Sebastião. Em Serralho me conhecem por Zé Carioca. E deu um sorriso amigável, mas o homem não retribuiu. Temos um bom negócio para o senhor e sua família. O senhor nos foi indicado pelo seu compadre, Zé da Farmácia. Podemos entrar e conversar em pouco?

O coronel deu uma tragada no palheiro. Apertou-o entre os dedos:

– Não se apresse, home. Venha conhecer o sítio.

– Não é necessário, coronel. O tempo é pouco.

– Faço questão.

E fomos visitar os porcos, galinhas, marrecos, dois ou três cavalos na estrebaria, plantação de milho, de cana, canteiro de alface, cebolinha, hortelã, repolho… Por último, atravessamos uma ponte rústica sobre um riozinho de águas límpidas em direção ao alambique, onde o homem moía cana e fabricava sua cachaça. Experimentamos dois dedos da boa.

Seu André olhava a toda hora no relógio. Fumou uns três cigarros.

Finalmente, entramos no casarão. Porta alta, sala com cadeiras de palhinha. Na frente de uma grande TV de válvulas, uma cadeira de balanço com almofada de tecido. Exclusiva do coronel.

Sentamos. Seu André deu a arrancada:

– Senhor coronel…

– Calma, home.

Colocou o cigarrinho apagado detrás da orelha, saiu da sala e voltou com uma cuia e uma chaleira. Eu e seu André nos entreolhamos. Encheu a cuia de erva, derramou nela a água fervente da chaleira e deu uma chupada na bomba. Tudo em silêncio. Já eram umas quatro horas da tarde. Tornou a encher a cuia e passou-a ao seu André. Esse deu uma chupada na bomba e fez uma careta. Continue, continue… falou o homem. Seu André fechou os olhos, respirou fundo e foi até o fim. Devolveu a cuia, que foi novamente enchida e passada para mim. Mais uma rodada. Seu André agora cruzara as pernas e balançava o pé que ficou por cima. Virava-se na cadeira de palhinha. Esperava a melhor hora de iniciar a negociação.

O coronel recolheu a cuia e a chaleira, foi lá para dentro e voltou com um pedaço de palha cortadinho. Estendeu-o sobre uma mesinha, frisou-o com um canivete fechado, tirou do bolso um rolo de fumo negro e começou a picá-lo, fazendo um carreirinho sobre a palha. Depois enrolou-a com dedos hábeis, acendeu e deu uma tragada. O fumo era forte, comecei a sentir enjoo. Cinco horas. Seu André, o famoso Zé Carioca, não sabia mais como iniciar a conversa.

– Veja, coronel Damásio…

O homem não deu atenção. Virou-se para um dos lados da sala e gritou:

– Madalena, sirva o café.

– Qué isso, coronel, não precisa. Logo vamos embora.

– O senhor tem que provar os bolinhos da Madalena. Ninguém sai daqui sem provar eles. E para dentro: café bem forte, Madá.

Levou uns vinte minutos. Nós em silêncio, seu André no terceiro cigarro. Uma morena gorda, de avental, surgiu na sala. Colocou as xícaras, os pratinhos e talheres numa mesa. Depois veio com um bule grande, esmaltado. O coronel empertigado numa cadeira. A mulher serviu o café, indicou o açucareiro, e foi buscar os famosos bolinhos. Eram bolinhos de banana, macios, deliciosos. Comi uns quatro de cara. Seu André parece que estava sem fome.

Cachorros latiram lá fora. O coronel pediu licença, levantou-se e foi verificar o que estava acontecendo. Seu André suspirou.

– Esse velho está me enrolando. Mas não saio daqui sem lhe empurrar uma apólice ao menos.

Em meia hora o homem voltou. Os cães estavam deixando os cavalos nervosos, explicou. O sol já estava se despedindo. A luz do dia se apagou de repente. Era agora ou nunca.

– Coronel, me deixe falar agora.

– Fale, home, fale.

Pediu sua pasta, que estava comigo. Retirou umas propostas em branco.

– É o seguinte. O senhor já não é tão novo. Tem mulher, filhos?

– Só mulher. A Joaquina pede desculpas por não atender, não está muito bem.

– É isso, coronel. Ninguém fica pra semente, não é mesmo? O que acontece com sua esposa se o senhor faltar? É preciso garantir a ela uma boa quantia para subsistência, o senhor não concorda? (fazer a pessoa concordar desde o começo, antes de dar a fisgada, era parte da estratégia) O senhor já ouviu falar em seguro de vida?

– Seguro? É isso? Por que não falou logo, home de Deus?

Levantou, foi lá dentro e voltou segurando uma caixa retangular, imitando um baú. Abriu e tirou dali um documento.

– Olha aqui. Já tenho um bom seguro, meu e da mulher. Nunca deixo de fazer e renovar. Como o senhor disse, ninguém fica pra semente. Ela e eu estamos garantidos.

Quando pegamos a estrada de volta, já passava das 20 horas. Nenhum seguro. Seu André apertava com força o volante do Opala, pisava fundo no acelerador. O carro pulava. Não sei por que, eu ia rindo por dentro.

 

Acadêmico: Hilton Gorresen

Gênero: Conto

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