Um novo Frankenstein?

(do romance O ETERNO BARNES)

 

– Começa por aqui – falou Barnes, como se estivesse falando para si mesmo.

Barnes resolvera implantar a matriz de eletrodos em Alexandre alguns dias antes de fazerem a cirurgia definitiva, a transferência dos arquivos cerebrais de um para o outro.

– Com isto teremos mais controle sobre o procedimento – falava muito baixinho, como se estivesse murmurando.

Estava por demais absorto em seu trabalho e Lourdes apenas o observava, enquanto ele lhe mostrava como conectar a matriz dos minúsculos eletrodos na pequena cavidade cerebral. Alexandre jazia inconsciente na mesa cirúrgica, com uma pequena perfuração na parte traseira da cabeça, agora totalmente raspada, justamente na parte de trás do cérebro, um pouco acima da nuca. Barnes estava conectando os eletrodos por ali, mostrando para Lourdes como deveria ser o procedimento, pois os fios que seriam ligados nessa matriz também precisariam ser conectados na sua própria cabeça alguns dias depois, antes passando pelo notebook para ser feita a depuração de ruídos desnecessários.

– Assim que terminarmos esta eletrocorticografia, precisamos fazer o teste de Wada – falou Barnes, enquanto manuseava com extrema perícia a pinça que inseria a matriz de eletrodos na rede neural de Alexandre, sobre a região subdural.

A tela de vídeo mostrava a precisão com que estes minúsculos eletrodos eram conectados, enquanto o aparelho desenhava linhas verdes que subiam e desciam, registrando os altos e baixos da atividade cerebral, como se a vida dependesse e se debatesse assim, para cima e para baixo, num movimento pendular infinito.

O teste de Wada a que Barnes se referia nada mais era do que injetar amital sódico, um anestésico rápido, nas veias carótidas do paciente para relaxar suas funções cerebrais, principalmente as funções de memória e linguagem, que se situam nos dois hemisférios cerebrais. Muito usado nos tratamentos de epilepsia, serve para manter a atividade cerebral relaxada e conseguir mapear com mais precisão as áreas de memória e linguagem.

– É a forma que encontrei para deixar os impulsos elétricos do cérebro mais “soltos”, ficando mais fácil de serem copiados – explicava Barnes pacientemente.

Como Alexandre não estava em coma profundo, sua atividade cerebral era oscilante, motivo pelo qual Barnes inferiu que precisava manter estável a frequência desta atividade, de modo que os arquivos de seu próprio cérebro pudessem ser transferidos e substituíssem os correspondentes na rede neural de Alexandre. Isso precisava ocorrer dentro de um mesmo padrão de frequência.

Lourdes continuava absorta e estranhamente triste. Sentia-se preparando um funeral e mal sabia distinguir se era o seu próprio ou do seu companheiro. Nunca tivera essa experiência de preparar um morto e isso a enchia de uma indizível angústia. Sempre convivera com a morte, é bem verdade, e não foram raras as vezes em que o paciente sucumbira em suas mãos. Mas, sempre que isso ocorria, chorava após a cirurgia, sentindo-se impotente e minúscula perante o vasto poderio da morte.

Porém, após seu choro, um estranho reconforto inundava o seu coração e sentia que isso fazia parte da vida, que morrer era nada mais que nascer de novo, como estava prescrito em todas as crenças.

Mas agora era diferente. Estava contribuindo para matar um pobre coitado, arvorando-se no direito de tirar uma parte da vida dele e trocar pela vida de outra pessoa. Na realidade, estava assassinando aquele paciente.

Chamaram-lhe a atenção os reduzidos eletrodos, que mal se distinguiam dentre os muitos que compunham a matriz. Na realidade, cada um deles nada mais era do que um minúsculo fio de aço rígido, todo revestido de plástico especial; apenas a ponta ficava exposta e era ela que fazia a conexão entre o cérebro e o computador, ligada por meio dos fios.

A matriz que Barnes criara era um aglutinado desses microeletrodos e cada ponta deles, que funcionava como um sensor, era enfiada no tecido cerebral, de sorte que cada uma criava uma trilha pelo tecido extracelular, permitindo que se registrasse a atividade elétrica dos neurônios que se situavam próximos dessa ponta exposta.

Cada eletrodo estava fixado na matriz e esta era inserida no cérebro como se fosse uma minúscula tampa no buraco aberto no osso craniano, deixando aparentes apenas os minúsculos fios de fibra ótica que faziam a ligação do cérebro com o exterior.

Estavam ambos compenetrados, a penumbra da noite lá fora parecia ter entrado naquela sala cirúrgica e espalhado um soturno ar de terror. A noite estava pesada, carregada, uma tempestade se aproximava. Alguns relâmpagos cintilavam seus raios ao longe e Barnes não pôde deixar de comparar-se ao desventurado Frankenstein, médico criador do monstro que lhe atormentou a vida.

Não estaria ele também criando seu próprio monstro, para depois fugir atormentado pela culpa e pelo medo? Meu Deus, o que estou fazendo? – pensava com seus botões, enquanto inseria a pequena matriz recheada de microeletrodos na minúscula cavidade exposta da cabeça de Alexandre. Tentou desviar seus pensamentos, pois não podia se dar ao luxo de ter crise de consciência. Não agora. Seu projeto estava prestes a ser finalizado e não era agora que iria fraquejar.

Ajustou um pouco a luz que jorrava do foco cirúrgico para melhor enxergar a cavidade na qual trabalhava, colocando a minúscula matriz com muito cuidado, encaixando-a perfeitamente no orifício. Com isso, a matriz introduzida no cérebro conseguia colher a atividade de milhares de neurônios ao mesmo tempo, registrando todas as nuances dos potenciais de ação sinápticos. A conexão por meio da fibra ótica permitia que a coleta das informações se processasse em microssegundos, possibilitando assim a armazenagem em um meio físico externo, para daí se fazer a remessa, com retardo também de microssegundos, para o cérebro alvo.

Barnes agora estava conectando um fio à dura-máter, a membrana mais externa das meninges; ele funcionaria como um fio terra, para que pudesse ter um ponto de referência para os sinais neurais capturados pelo microeletrodo.

– Podes ajustar o amplificador? – perguntou Barnes.

Como os impulsos elétricos gerados pelo cérebro são muito pequenos, esses sinais, para serem trabalhados, precisam ser amplificados consideravelmente. E, ao serem amplificados, propiciam o som de acordes cerebrais, uma linda sinfonia. Talvez fosse em razão disso que tanto Barnes quanto James se apaixonaram pelos arquivos extraídos do cérebro, por isso ficaram tão maravilhados, porque aquela música era uma criação divina.

Lourdes ajustou o amplificador e, quando a sinfonia dos neurônios de Alexandre inundou a sala, quando sua atividade cerebral se transformou em melodia, passou do estado de absorta para o de embevecida. Era estranho o poder que aquela música exercia sobre as pessoas.

Ficou parada ao som da música, a contemplar aquele ser pelo qual se apaixonara tão intensamente. Já não tinha mais noção do que aquilo tudo representava, diferentemente dos primeiros dias após Barnes ter lhe contado, quando ficou estarrecida. Agora aquilo já não mais importava, parecia anestesiada e só tinha vontade de ficar fitando Barnes. E quanto mais tempo pudesse ficar com ele, mais se sentia leve, pois daqui a alguns dias ele partiria.

Barnes observava o aparelho de anestesia, que monitorava as funções vitais de Alexandre. Embora não estivessem administrando fluxo de gases, pois se tratava de uma intervenção localizada e de pequena amplitude, tivera o cuidado de seguir o procedimento cirúrgico à risca, para uma rápida intervenção, caso fosse preciso. Mas Alexandre estava em coma e suas funções vitais, estáveis, respondendo satisfatoriamente aos estímulos.

Ao seu lado, Lourdes analisava a forma como Barnes trabalhava, o profissionalismo e o cuidado que tinha com o paciente, e era justamente isso que tanto a atraía. Já não sabia mais dizer se o que ele estava fazendo era correto ou não, se tudo aquilo que estavam fazendo nos últimos dias infringia a ética ou não. Nada mais importava agora, não sabia explicar, mas sua vontade era de apenas ficar contemplando seu homem, como se contemplasse a vida, como uma pessoa que, numa tarde ensolarada de primavera, senta-se à beira do lago e queda-se silenciosamente a contemplar a beleza da paisagem.

Esses pensamentos bucólicos assomavam constantemente à sua cabeça nos últimos dias, os médicos diriam que era depressão, enquanto os poetas diriam que eram lágrimas de seu coração, constrito pelo prenúncio da separação do amado. A voz de Barnes tirou-lhe a placidez dos pensamentos:

– Estamos colocando a matriz no córtex entorrinal porque os estudos indicam que a memória se situa aqui.

Compenetrado na sua atividade, ele não falava especificamente para Lourdes, falava para uma plateia imaginária, pois quem já foi professor nunca perderá o habito de ensinar.

Barnes sabia que o córtex entorrinal era a área chave do cérebro, a parte responsável pelo armazenamento das informações. Estava situado logo acima do hipocampo e funcionava como uma porta de acesso à unidade central de memória.

– É lá que vamos buscar nossas informações – dizia em voz baixa.

Era lá que ele vasculhava à procura de tudo aquilo que o ser humano representa, aquilo que o mantém com vida, seus sonhos, seus devaneios, suas aspirações, suas emoções, seus amores e seus ódios, tudo ficava lá armazenado.

Será que conseguiria apagar todas essas reminiscências da cabeça de Alexandre para implantar as suas? Será que todas as suas emoções, todos os seus sonhos vividos, todos os segredos escondidos, aquilo que ele jamais teria coragem de contar a alguém, será que tudo isso poderia ser tirado do seu cérebro e repassado para Alexandre, substituindo todos os arquivos dele?

A craniotomia que estavam fazendo em Alexandre estava quase terminando, alguns dias depois ele já poderia receber os dados do cérebro de Barnes. Sua cabeça alva agora tinha apenas uma pequena marca na parte de trás, com minúsculas pontas aparecendo. Ali seriam conectados os fios que mudariam completamente a vida dele. Aquelas minúsculas pontas seriam as portas de entrada do cérebro de Alexandre, seriam o elo entre duas pessoas, uma conexão com o divino, fator que fundiria o criador com a criatura.

Logo Alexandre estaria recuperado da cirurgia e teria todos os eletrodos aptos a emitir e receber sinais sinápticos, o que permitiria a Barnes conseguir seu intento de imiscuir-se naquele corpo, apossar-se daquele ser e tornar-se o outro, o que lhe daria a oportunidade tão sonhada de eternizar-se, de existir por intermédio de outro ser.

Logo seremos apenas cérebros depositados em vasos de vidro cheios de solução salina, como azeitonas em conserva, à espera de um corpo que nos torne móveis, que permita que sejamos eternos. O velho e louco sonho de ser eterno, de jamais morrer, perseguido pela humanidade desde que conseguiu ter consciência de sua existência.

Lembrou-se de Fausto e seu pacto com o demônio para tornar-se eterno, pacto assinado com o próprio sangue. Olhou para as luvas de borracha que revestiam suas mãos antes alvas, agora com manchas de sangue, vislumbrando se este sangue não estaria servindo para assinar seu pacto também.

O que o esperaria depois? Será que o satânico Mefistófeles não viria cobrar a dívida que agora assinava com aquele sangue, tomando sua vida e atirando-o na danação eterna?

Quem sabe ele não estaria inaugurando uma nova era para a humanidade. Quem sabe não seria ele o precursor na lenta jornada do ser humano rumo ao eterno. Talvez no futuro viesse a ser venerado como o primeiro homem a não morrer, a ser eterno.

Talvez no futuro fosse adorado como um deus. Talvez.

Descartou as luvas e foi até a janela, onde agora o vento assobiava. Olhou a noite escura e recortada de relâmpagos, uma imagem tenebrosa e bem propícia ao clima do que estavam fazendo. Ao fundo, os prédios da cidade erguiam seus contornos nas sombras da noite escura. Algumas luzes acesas, outras apagadas, mas todas repletas de vida, de sonhos, de paixões, todas trilhando a lenta e inexorável linha da vida, linha do tempo, pois a vida e o tempo se fundem em uma única coisa.

Todos nasceram um dia e todos estavam caminhando em direção à morte. Só ele, Barnes, é que estava tentando mudar esse paradigma, não aceitava a morte, lutava contra esse estigma, queria ser eterno.

Será que estava certo? Será que não deveria abandonar esse projeto agora, enquanto ainda dava tempo? Será que não deveria resignar-se com sua sorte, como todos os demais mortais e aceitar que a eternidade não é algo possível ao ser humano?

Os braços de Lourdes o envolveram, encostando seu corpo no dele por trás. Não via seus olhos, apenas sentia seu respirar ofegante. Sentia a súplica em seus olhos, sabia o quanto ele era desejado naquele momento, não um desejo mundano, desejo de carne, mas aquele desejo eterno, aquela melancolia que aos poucos nos invade a alma, sentimento indefinível, mistura de amor e tristeza.

Deixaram-se ficar assim contemplativos, fundidos em uma só alma, como se estivessem se despedindo um do outro, se despedindo da vida do outro e essa despedida era dolorida.

Um raio rasgou a noite, inundando tudo ao redor com aquela luz tenebrosa. O estrondo do trovão sacudiu seus corpos.

Será que não estaria na hora de erguer Alexandre para o telhado, igual Frankenstein, para receber a energia necessária à nova vida que se avizinhava?

 

 

A vida é um jogo de xadrez

 

– James não vem para cá? – perguntou Bruno, acendendo o cigarro.

– Não, vai chegar tarde hoje, foi numa festa da família dele – respondeu Tatiana, levantando-se para ir para o chuveiro.

– Festa?

– É. Parece que a mãe está fazendo aniversário e resolveram juntar a família.

– Então a gente podia sair para jantar.

Falou num volume de voz que tentava ser mais alto que o barulho do chuveiro. Estava tomando mais um uísque, o uísque que dera para Tatiana guardar ali “para quando eu vier”.

Bruno gostava das boas coisas da vida. Médico precoce, conseguira se destacar na área da cardiologia, tendo sua tese de mestrado ganhado mundo ao dissertar sobre as causas que originavam o prolapso mitral. Exímio cirurgião, formado há pouco mais de dez anos, fora alçado à condição de chefe do Departamento Médico da universidade há cerca de um ano.

Isso dentre todo o corpo clínico do Hospital Universitário, que não era pequeno. Apesar da pouca idade para a responsabilidade do cargo, era respeitado por seus pares. Tinha um único vício: mulheres. E Tatiana sabia explorar esse vício como ninguém.

– Ele deve estar contente com a promoção, hein? – Bruno fitava os pequenos círculos de fumaça que espiralavam de seu cigarro.

– Nem fale – Tatiana se enxugava. – Agora ele só existe para o Departamento.

Era verdade. James fora promovido ao cargo de chefe adjunto do Departamento de Exatas e andava extremamente empolgado. Era muito jovem, mas muito responsável com suas novas atribuições.

– Contente com o cargo e com os arquivos de um tal Doutor Barnes, não sei se você conhece.

Opa, aí tem coisa que eu não sei! – pensou Bruno. E, quando havia algo que ele não sabia, sua curiosidade se excitava. Assim como Tatiana, tinha um senso de oportunidade aguçado, vislumbrava as chances em pequenas coisas, pequenos detalhes, que, por coincidência, lhe renderam inúmeros frutos, inclusive a chefia do Departamento. Mas não podia deixar Tatiana perceber que não sabia nada.

– É das pesquisas de Barnes, ele me falou alguma coisa – mentiu, apagando o cigarro – Mas o que James tem a ver com isso?

– Não sei, mas só fala deles.

Tatiana deu uma pausa. Business. Business. Na vida tudo são negócios. E Bruno era um ótimo negócio, sempre rendia algo. Não sabia explicar, mas sentia atração por ele, gostava dele, percebia nele os traços dela mesma, aquela rapidez de raciocínio, aquele tino para negócios, aquele jogo de interesses que se projetava em tudo que fazia.

Com ele sentia estar sempre jogando xadrez, sempre teria que analisar com cuidado qual pedra mover. E ela gostava de ganhar sempre, de vencer, de ser recompensada por suas jogadas.

Não diria que não gostava de James. Gostava, sim, e pensava até em assumir algo mais sério com ele. Aliás, parece que tudo ia se encaminhando para isso. Mas James era ingênuo, não via maldade nas coisas, não tinha nenhuma malandragem. Na realidade, Tatiana respeitava mesmo era Bruno. Era um cara bem articulado, de uma malandragem refinada, não tinha escrúpulos, mas vendia uma imagem de seriedade e bom-mocismo.

Não deixa de ser um bom partido também, pensou meio sorrindo.

– Ele diz que são arquivos diferentes. Se você quiser, eu posso conseguir uma cópia – Tatiana se aproximou, olhou Bruno nos olhos, riu e jogou a isca. James lhe pedira para guardar os arquivos. Estavam ali com ela, mas Bruno não sabia. Ela fizera sua jogada, movera sua pedra. Agora era a vez de ele jogar e ela sentia que ele estava pensando. A resposta poderia encerrar o jogo definitivamente ou poderia derivar para novos lances.

– Não sei se vale a pena – Bruno pescava para saber o que ela sabia. – Se fossem importantes, o Barnes não deixaria eles soltos por aí.

Deu aquela risadinha característica de quem havia feito uma boa jogada, dera um ótimo lance, colocara o adversário na defensiva.

– Devem ser interessantes, porque o James está morrendo de medo do Barnes! – Tatiana sabia dourar a pílula, percebendo o quanto esta informação se refletira nos olhos de Bruno, como aguçara a sua curiosidade. Ele tentou disfarçar, mas Tatiana sabia colher a informação que queria daqueles olhos. A vindima vai começar, pensou.

­ – OK, me conte a história – Ia emendar “sua cadela”, mas se conteve. Sabia que ficariam nesse joguinho por muito tempo e hoje não estava com muita vontade de jogar. Vamos ver o que essa piranha quer, pensou.

– O que eu ganho com isso? – Tatiana já havia perdido a vergonha com Bruno, já não se intimidava em se desnudar para ele, tanto de corpo como de alma. Eram iguais e cada um sabia como era o comportamento rival, buscando sempre sair ganhando, mas não deixando de se respeitarem como oponentes.

– O que você está querendo? – Bruno sabia que ela não queria só dinheiro. Tatiana era esperta, sabia negociar, sabia deixar as portas abertas.

“Numa negociação você nunca pode fechar portas”, ela aprendera com o professor Áureo. Sempre tem que deixar alternativas para o outro. Sempre tem que deixar uma rota de fuga para o oponente. A todo momento as oportunidades passam ao nosso lado e oportunista é quem as enxerga.

“O cavalo sempre passa encilhado”, dizia sua avó, de quem herdara os olhos bonitos; isso antes de ela ir para o hospital, coitada, porque agora seus olhos apenas fitavam o vazio e sua boca só proferia sons ininteligíveis.

– Você não está precisando de uma secretária? – Tatiana queria subir de cargo e agora aparecia a oportunidade de ouro. Business, pensava, enquanto se pendurava no pescoço de Bruno, que agora se levantara. Ele era bonito, charmoso, já tinha passado aquela fase de garotão e tinha “um jeito malandro de ser”. Tinha pegada e ele adorava isso.

Mas essa ideia de secretária era tudo o que Bruno não queria. Tatiana é muito rápida, uma piranha muito voraz, pensava. Seria uma calamidade tê-la por perto. Imagine, seria muito perigoso, além de fazer o relacionamento deles, clandestino até agora, perder a graça rapidamente.

Além disso, tinha as outras meninas. Secretárias, principalmente. Até porque Bruno não era muito seletivo e muitas garotas ansiavam por uma nota melhor na prova, um pequeno afago financeiro, uma lembrancinha reluzente para pendurar no pescoço – ou até mesmo um cargo, uma promoção. Bruno era influente e elas sabiam disso, estava aí a razão de o ficarem rodeando feito moscas. Ele era zeloso em seu trabalho, extremamente diligente, mas sabia como ninguém tirar partido das situações.

Mas não poderia dizer não. Bem que ela merecia um sonoro não, mas ele não ia dizer, pelo menos assim de cara. Ambos estavam jogando e ambos conheciam as regras do jogo.

– Talvez no Direito, parece que tem uma vaga.

É uma possibilidade, pensou Tatiana. E, se houvesse, Bruno conseguiria. Se ele prometia, ia no mínimo verificar. Eram safados os dois, mas de uma safadeza honesta. Toda coletividade possui seus códigos de ética, de conduta, inclusive os bandidos. Era o tal Contrato Social, do escritor Jean Jacques Rousseau, lembrou Tatiana, rememorando suas aulas de sociologia, com aquela vaca de professora que lhe dava nota baixa, diferente dos professores homens, que sempre tinham uma razão para melhorar suas notas.

Contou o que sabia, o que vira e o que James lhe contara. Falou das supostas cópias de cérebros de pacientes. Falou que Barnes havia discutido com James, do contrato que fizeram, que James estava com medo de Barnes. E, lógico, omitiu que tinha uma cópia dos arquivos. Aquilo era moeda de troca e antes do pagamento não se entrega toda a mercadoria.

– Mas ele ficou de me trazer a cópia, ele acha que aqui comigo é mais seguro.

Então é isso, pensou Bruno. Por essa razão Barnes andava sumido. Até Lourdes havia comentado que ele andava estranho. Pudera, com uma pesquisa dessas! Imagine a repercussão disso, os prêmios, as distinções.

E os convites para outros projetos? E as verbas que a universidade conseguiria. Isso era coisa para virar um futuro reitor. E ele estava sendo deixado de lado. As coisas aconteciam debaixo de suas barbas e ele sem saber de nada? Assinava os empenhos de pagamento para as pesquisas, conseguia a grana e ia ficar chupando o dedo?

Falaria com Barnes. Teria uma boa conversa com ele. Não, por enquanto não. Isso requeria maiores investigações. Primeiro precisava ter mais elementos para conversar. No tabuleiro de xadrez, tinha agora um novo oponente, que se chamava Barnes.

Mas o jogo estava apenas começando e Bruno não sabia ainda como o adversário jogava. Precisava primeiro mover as pedras menores para ver o que ele faria.

O que ele realmente pretendia? Por que não divulgava as pesquisas? O que ele conseguiu até agora?

Geralmente as pesquisas são compartilhadas entre os pares, para que os avanços individuais sejam somados. “A inteligência de um grupo é geralmente maior que a soma das capacidades de vários indivíduos”, descobrira o pesquisador americano Thomas Malone, do MIT, o famoso Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Bruno gostava de aplicar esses conceitos de gestão em seu Departamento. Os resultados dessa cooperação estavam aparecendo e ele passara a ser louvado por tais sucessos. Fama e poder era o que buscava e não era um de seus subordinados que iria ficar escondendo o jogo, deixando-o fora do tabuleiro.

Barnes era demasiado inteligente para agir dessa forma sem alguma razão plausível. Bruno precisava descobrir o que havia por trás disso. Estava perdendo terreno, estavam agindo sem ele saber. Nesse grande jogo da vida, nessa imensa competição pela sobrevivência, não gostava de ficar só assistindo, não nascera para ser mero espectador. Precisava se apossar de um naco desse banquete e, ao que tudo indicava, o banquete ia ser muito farto.

Percebia que Tatiana tinha os arquivos. Era óbvio demais. Ela não saberia tudo aquilo sem que James não lhe tivesse repassado os arquivos.

– Muito bem, cadê os arquivos?

– Não estão comigo, já disse.

– Estão, sim. Queres uma vaga melhor na universidade?

Tatiana não tinha muita alternativa… Jogava bem, mas Bruno jogava melhor. Iria ganhar o jogo. Por isso Tatiana o admirava tanto e não conseguia resistir.

– Não estão comigo – Tentou resistir, mas já era tarde.

– Se James está com tanto medo de Barnes é porque já te passou os arquivos – falou Bruno, enquanto lhe estendia a mão, pedindo o dispositivo.

Tatiana foi buscá-lo, já não tinha mais saída e uma vaga melhor era uma grande tentação.

Deu um beijo em sua boca e sussurrou:

– Abre a mão.

E depositou na mão dele o pen drive.

Foi muito fácil, pensou Bruno.

– Você jura que não conta pra ninguém? – meio fingindo agora um constrangimento que já não sentia.

– Fica tranquila, você me conhece – falou Bruno, com ar de satisfação ao colocar no bolso o pequeno dispositivo.

Despediram-se, um Bruno absorto em seus pensamentos, tentando decifrar antecipadamente o que poderia ter dentro daquele pequeno aparelho e uma Tatiana arrependida de ter entregado um tesouro sem muita resistência e com uma incerta recompensa.

E, pior, nem tinha feito uma cópia. Como fora tola, pensava.

 

 

 

 

 

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