Um pra mim, um pra você
OLHOU O NEGRO À SUA FRENTE. Estava espantado. Os olhos pareciam duas bolas de gude enormes. Passava da meia-noite. Nas ruas da cidadezinha reinava o silêncio. Vez ou outra, cães uivavam e gatos no cio miavam enlouquecidos. Do resto, nenhuma vivalma pelas ruas.
Cirilo, o policial de plantão, já estava enfiado debaixo dos lençóis. Eram dois, fora o delegado, que raramente aparecia durante o plantão. Até mesmo durante o dia, o delegado estava quase sempre ausente, com certeza vistoriando a sua pequena fazenda, onde criava vacas leiteiras e rãs.
Era até bom que não aparecesse: Cirilo não gostava de ser aborrecido. O delegado, muito gordo, as banhas caindo sobre o cinto das calças, ficava proseando à toa, contando os problemas e as novidades das suas atividades de pequeno fazendeiro. E isto chateava muito. Ninguém tinha saco para aguentar as suas delongas.
Naquela semana, ele fazia o plantão. Era separado da mulher e morava num quarto alugado. Tanto fazia dormir naquela espelunca ou na cama de ferro no canto da sala que era usada durante o dia para receber as queixas. Baratas e percevejos, no meio da noite, passeavam nas paredes onde o reboco mal feito caía com frequência, principalmente quando as chuvas se prolongavam por semanas e a terra roxa se transformava em imenso pântano.
Quatro presos numa única cela, que roncavam feito feras adormecidas, não o perturbavam. Eram ladrões já conhecidos. Um roubara galinhas de uma viúva. Outro limpara as parcas doações da paróquia. Os outros dois traziam muambas do Paraguai e revendiam à população. Nenhum era perigoso. Em poucos dias estariam soltos e praticando os mesmos atos.
De onde estava, Cirilo ouvia os roncos descompassados dos presos. O que ele podia fazer senão dormir também? Mal se enfiara debaixo dos lençóis, o negro bateu a sineta da porta várias vezes. No começo, não conseguia entender o que o negro dizia. Olhava em sua direção e o que conseguia ver era um fruto da hereditariedade: a pele preta, o nariz largo parecendo dois fornos, para inalar o ar úmido dos trópicos, e o couro cabeludo coberto de tufos de pelo, como se fossem Bombril, que se assemelhavam a arbustos num terreno pedregoso. Aos poucos, conseguiu ouvi-lo:
– Seu guarda, por favor venha comigo. Eles estão dividindo!
– Mas do que se trata, afinal?
– Eles estão dividindo as almas, seu guarda! Juro pela minha querida mãe, que está no céu!
– Mas quem está dividindo? Esclareça, não fique falando coisas ao vento.
– Deus e o Diabo, eles estão dividindo as almas! Venha correndo.
– Mas que absurdo! Você bebeu demais! Tenha a santa paciência, vá pra casa, não me amole. Eu já estava deitado…
E já ia fechar a porta da delegacia na cara do negro. Mas este empurrou a porta com força, arregalando mais os olhos assustados. Resolveu, então, perguntar com intenção de dar corda à conversa e, em seguida, trancafiá-lo junto com os quatro presos que roncavam na cela:
– Vá falando, então! Onde estão dividindo?
– No cemitério, seu guarda! Eu estava passando por lá, em direção de minha casa, rente ao muro, quando eu ouvi tudo. Quero ser enterrado vivo se isto não for verdade! Que a terra coma meus olhos! Minha boca e meus ouvidos!
A esta altura, Cirilo já tinha perdido o sono.
– Eu estava passando rente ao muro e ouvi…
– Conte o que ouviu – disse Cirilo disposto a rir do negro.
– “Um pra mim, outro pra você”. Depois o silêncio caía mortal por alguns segundos. Em seguida, novamente ouvi “um pra mim, outro pra você”. Por vários minutos fiquei paralisado, sem sangue nas veias, sem saber o que fazer, até que consegui correr até aqui. Juro, não estou mentindo.
– O que espera que eu faça? Correr atrás de uma bobagem?
– Não é bobagem! Juro que não é!
– Você bebeu demais! Vá pra casa. Não me faça de tolo.
– É a verdade! Juro por todos os santos. Estão dividindo as almas. Eu ouvi “um pra mim, outro pra você”!
Contrafeito, passando a mão num trinta e oito, disse:
– Bem, seja o que for, vamos lá! Só acredito vendo!
2
HAVIA UMA FIGUEIRA carregada dentro do cemitério. Aqueles frutos metiam cobiça nos habitantes da cidadezinha. Estavam maduros. O vigilante do cemitério corria com os intrometidos. Enquanto não havia arrombamento de túmulos por parte de vândalos, quem quisesse apanhar os frutos ficava à vontade. De repente, um bando de moleques drogados começou a violar os túmulos e o prefeito foi obrigado a colocar vigias durante o dia e, principalmente, à noite. E ninguém teve mais oportunidade de apanhar os frutos da figueira.
Dois jovens amigos de escola, ao voltarem de uma festa, depois de terem tomado um litro de rum cada um, encheram-se de coragem e decidiram entrar no cemitério, na hora em que o vigilante já estava curtindo o belo sono e, naquela noite, na capela não havia nenhum velório.
– Os figos estão caindo de maduro!
– Esses mortos não sabem aproveitar a vida mesmo! – disse o mais baixinho e metido a escrever novelas obscenas.
Eles pularam o muro, subiram à árvore com as sacolas penduradas no ombro e começaram a distribuir o ‘prêmio’.
– Um pra mim, um pra você.
– Um pra mim, um pra você.
No escuro, entretanto, alguns frutos escaparam de suas mãos e caíram do outro lado do muro.
– Pô, você deixou esses dois caírem do lado de fora do muro!
– Não faz mal, depois que a gente terminar aqui pegamos os outros.
– Então tá bom, mais um pra mim, um pra você.
Naquele momento, passava o negro totalmente embriagado rente ao muro, do lado de fora. Ficou paralisado. O que era aquilo? Achou que tinha bebido demais. Sacudiu a cabeça com os tufos de cabelos emaranhados, abriu mais as largas narinas, respirou o ar da noite. E novamente ouviu:
– Um pra mim, outro pra você.
O sangue gelou. Nunca acreditara em histórias de assombração. Balançou a cabeça: tinha bebido demais. Prestou atenção. Ouviu novamente:
– Um pra mim, outro pra você.
Então era real: Deus e o Diabo estavam dividindo as almas do cemitério!
E saiu correndo em direção da delegacia.
– Seu guarda, vem comigo! Deus e o Diabo estão no cemitério dividindo as almas dos mortos!
– Ah, cala a boca, beberrão!
– Juro que é verdade, vem comigo.
3
A NOITE MORNA E ABAFADA suprimia as passadas nas pedras toscamente cortadas e assentadas da rua deserta. Algumas casas mantinham suas janelas abertas e os zunidos dos velhos ventiladores chegavam até eles. Cirilo ria-se da caminhada ao cemitério àquelas horas e preparava as chacotas sobre o negro bêbado e intrometido. O povaréu haveria de rir-se até o mundo desabar! Atrás dele, o negro caminhava quieto e, às vezes, gaguejava, a língua presa. “Essa, eu pago pra ver”, pensou Cirilo. “Na volta, eu coloco este negro na cadeia, junto com os outros quatro. Não deixarei escapar a oportunidade” E lá foram os dois até o cemitério, que não era longe. Nenhuma vivalma pelas ruas. Um vento morno prenunciava chuva pela madrugada.
Chegaram perto do muro e começaram a escutar…
– Um pra mim, um pra você.
Cirilo tremeu, horrorizado, como se tivesse levado um choque. O negro tinha razão!
– Deus do céu! O que se passa? É o dia do Apocalipse! Eles estão dividindo as almas dos mortos! O que será que vem depois?
Lá dentro, ainda sobre o efeito do rum, mas com os estômagos recheados, os dois amigos já estavam quase terminando… O baixinho que escrevia novelas obscenas finalizou:
– Um pra mim, um pra você. Pronto, acabamos aqui. E agora?
O outro arrotou e disse:
– Agora a gente vai lá fora e pega os dois que estão do outro lado do muro…
Neste momento, o guarda Cirilo caiu morto aos pés do negro bêbado.