Leonardo, Bem-vinda e a solidão

Havia, todo ano, uma feira livre de animais na cidade. Ali vinham grandes criadores de outras regiões e também agricultores familiares. Os organizadores, por diversas vezes, tentaram retaliar os pequenos criadores e deixar a feira àqueles que se dedicavam aos melhoramentos genéticos. Mas não tiveram sucesso. Assim, todo ano, entre os reis do gado, ali comparecia toda sorte de criadores. Por um lado, era algo democrático; por outro, alguns animais expostos, genética misturada, contrastavam com os bem-desenvolvidos, genética apurada, e isso causava certo mal-estar aos que desejavam o progresso contínuo de suas raças ou queriam simplesmente obter alguma posição na sociedade.

Na área destinada aos pequenos criadores, um homem envelhecido estava sentado num pequeno tamborete junto a sua égua, também com certa idade. Estava bem sossegado, com o chapéu de feltro surrado caído sobre a testa. Tinha quase oitenta anos e não escondia as profundas rugas no rosto queimado pelo sol. Viam-se os cabelos brancos saindo da aba do chapéu e a barba branca, rala, dava-lhe um ar de ermitão. Vestia paletó de brim amarelo com três botões de osso. A calça, também de brim, era de um cinza negro, já bem gasta pelo uso. Percebia-se que ele colocara sua roupa especial, que há anos não usava, para aquela feira. Os sapatos eram de couro, bicos achatados e bem polidos.

Trançava sem pressa um laço de couro cru, enquanto ouvia a música que vinha do alto-falante logo mais adiante. Embora meio surdo, não desgrudava um dos ouvidos de outras baias onde diversos negociadores acertavam propostas. O barulho e o vozerio, que vinham de todos os lados, não o perturbavam. Mugidos de bois e vacas chegavam a todo momento aos seus ouvidos. O relinchar dos cavalos soava como música distante. O sol da tarde penetrava de lado onde estava e batia-lhe sobre o ombro direito. Apesar do barulho intenso, ele continuava tranquilo em seu canto, como se nada existisse, trançando o laço.

Aquela gente não o conhecia. Chamava-se Leonardo e morava distante da cidade. Precisamente doze léguas, no oco de serra, um lugar de difícil acesso. Há anos morava lá, sozinho, desde que sua mulher morrera de tuberculose e os filhos se debandaram pelos caminhos da vida e nunca mais voltaram. Cultivava um pedaço de terra encravado na montanha. Dias e meses sem avistar uma viva alma. Perdera a noção das estações do ano e do tempo.

Ao seu lado, com a cabeça perto do seu ombro, a égua estava quieta, com olhos atentos, não se mostrando assustada com todo aquele entremeado de vozes. Pessoas passavam a sua frente todo momento e meninos chegavam a jogar pequenos grãos de milho em seu focinho para ver se ela se espantava. Mas qual! Estava tranquila.

2

Era uma égua velha, mas boa. Pelo sadio e bem tratado. Angulosa nos quartos traseiros. Na testa, havia uma mancha branca como se fosse uma estrela. Pelo jeito, já parira muitas vezes. De vez em quando, abocanhava um feixe de feno e mastigava num ritmo cadenciado, enquanto balançava o rabo de um lado para outro espantando as moscas.

Parecia satisfeita e, com frequência, exalava pelas narinas abertas um bafo quente. Percebia-se que era uma égua sã e esperta, que chegara à idade madura conhecendo todas as dificuldades. A corda que a segurava era de longo uso e estava frouxa e pendia ao chão sem estar fixa em ponto algum. Pelo jeito, não era de seu feitio fugir ou andar perambulando à toa. Exibia, assim, um ar de felicidade por estar ali junto ao seu dono que, calmamente, trançava o laço.

Passara por muitos acontecimentos em sua vida e nada mais a assustava. Quando pequena, foi roubada por salteadores e levada para longe de sua mãe. Depois, vendida numa feira pública. Seu dono a maltratava com chicotes grossos. Suportou os maus tratos com resignação. Porém, certo dia, seu dono foi à cidade e ela aproveitou a oportunidade para fugir. Dias e noites, perambulou por uma estradinha cheia de curvas, subidas e pedregulhos, sem rumo, até que foi capturada por um fazendeiro. Foi um tempo maravilhoso. Era bem tratada e havia, na fazenda, um cavalo tordilho que se dedicava a ela. O romance deu belos frutos os cavalinhos e potrancas eram admirados por toda a redondeza. Aparecera, certa temporada de chuva, com uma jiboia enrolada no pescoço, deixando todo mundo assustado. Isto a deixou famosa. Histórias foram criadas e contadas sobre ela.

Um dia, o patrão morreu. Ela assistiu a tudo: um grupo de homens encapuzados invadiu a fazenda, logo pela manhã, e efetuou diversos tiros à queima-roupa no patrão, que rolou na poeira do terreiro. Depois, esses homens levaram o gado do curral num caminhão boiadeiro e só não a levaram porque ela, muito assustada e embrutecida, escondeu-se numa faixa de mata. Os herdeiros, que moravam em São Paulo, venderam a fazenda com a porteira fechada.

Sobreveio tempo difícil. O novo dono tinha hábitos ferozes e costumava espancá-la. Os cavalos velhos eram vendidos para fazer mortadela. Então, numa noite, novamente fugiu e pegou a estradinha cheia de curvas e pedregulhos. Vagabundeou por dias e, sem querer, apareceu no sitiozinho do velho Leonardo, onde foi bem acolhida. De lá, nunca mais saiu.

Durante dias, o velho Leonardo, enquanto cuidava de sua pequena plantação, se ocupou com o nome dela. Quedava-se admirando a égua! Aquela estrela bonita na testa, olhares rápidos e atentos, ouvidos acuidados. Desfilaram nomes: Aparecida, Forasteira, Bem-vinda, Fabulosa, Margarida, Estrela, Espertinha, Primavera, Fujona… Pensou até em colocar o nome da finada mulher… Mas recuou. Seria uma ofensa? Deus poderia castigá-lo. Como era difícil dar nomes aos bichos. Em sua cabeça, nomear alguma coisa ou bicho era dar vida, uma função de Deus. Por semanas, a égua ficou sem nome. Escolheu, por final:

Bem-vinda! Gostou do nome?

Ela se aproximou e esfregou a cabeça nas mãos de Leonardo.

Que beleza! Acho que você gostou mesmo!

No final da tarde, conduziu-a ao riacho de águas cristalinas, que descia da serra e com uma pequena cabaça em forma de concha, batizou-a, como se fosse gente, fazendo o sinal-da-cruz.

3

Era a primeira vez que vinha à cidade. Ali estava na feira, junto com seu dono, e nada a interessava. Havia boa comida e a forragem do solo era aconchegante. Não estava só. Entrevia por sobre a baia uma imensidão de cabeças de vacas, touros e cavalos.

Enquanto todos procuravam chamar a atenção, Leonardo e sua égua permaneciam quietos, pouco se importando com o burburinho. De vez em quando, deixando de trançar o laço, Leonardo a acariciava passando de leve a mão direita sobre suas orelhas.

Por sera boa égua, logo surgiu um comprador. Era alto e gordo. Fitou-a com atenção e quis passar as mãos em seu costado. Ela não gostou dessa familiaridade, recuando.

Então, tio, quanto custa essa égua?

O velho Leonardo continuou a trançar o laço. Fez que não ouviu. O homem voltou a perguntar.

Quanto custa essa égua, homem?

Sem tirar os olhos do laço, respondeu:

Não me leve a mal. Mas não está à venda.

Qual é o nome dela?

Não respondeu. Há anos vivia no oco de serra, não estava acostumado a conversar.

Então, tio, não tem nome? É bicho pagão?

Levantou a aba do chapéu e, com resignação, disse:

Tem nome, sim. É Bem-vinda.

Por que não falou logo? Quero comprá-la.

Desculpe, senhor, mas não está à venda.

Largou o laço e assoou o nariz num lenço amarelado. Com certeza, há anos aquele lenço estava guardado no baú. O homem se retirou, visivelmente insatisfeito. Logo adiante, voltou-se e ficou mirando a égua. Como alguém podia trazer um animal numa feira se não era para vendê-lo?

Logo a seguir, outro apareceu. Era um criador conhecido da região. Estava bem trajado e usava chapéu tipo caubói. Rosto embexigado, queixo pontudo. Quis também afagar o dorso da égua. Mas ela não deixou, encolhendo-se.

Ei, tio, quanto custa a égua?

O velho, desta vez, tirou os olhos do laço e olhou demoradamente a égua. Depois, olhou para outro lado sem avistar coisa alguma. Por final, disse:

Não está à venda.

Voltou a ficar mudo, dando a conversa por encerrada. Lá se foi o comprador sem entender nada. Cada louco com suas manias. Bem, tudo é possível numa feira…

Pouco depois, outro interessado. O velho deu a mesma resposta. A égua não estava à venda. Por que insistiam? Outros apareceram. Sempre a mesma resposta. Ele não tinha necessidade alguma de vender a égua. E pronto. Por que não o compreendiam? Bem-vinda era como gente. Não estava à venda. Tinha o suficiente. Não precisava de mais dinheiro. Se a vendesse, o que faria com o dinheiro? Ficaria só naquele sítio distante. Quem, daquela gente importante, teria coragem de fazer companhia?

4

No final da tarde, voltou o primeiro comprador. Parecia mais alto e mais gordo. Suava muito.

Então, tio, já vendeu a égua?

O velho mirou-o, quietamente, e meneou a cabeça.

Olha, tio, por que veio nessa feira? Quem aparece por aqui deseja fazer negócios. Estou errado?

Nenhuma resposta. O velho abaixara a cabeça e recomeçou a trançar o laço de couro cru. Ora, ele não queria vender a égua. E pronto! Já dissera que não estava à venda.

Eu quero comprá-la. Gostei dela. Se não quer vendê-la, por que veio aqui? Por acaso, é roubada?

Isso caiu como uma martelada na cabeça do velho Leonardo. Ora, jamais roubara sequer um canivete. Égua roubada! Era demais. Olhou para o homem. Estava vermelho de raiva, ofendido.

Eu vou falar com o diretor da feira! Isso é um absurdo! Por acaso, tenho cara de palhaço?

Pressentiu que tinha que acalmar aquele homem.

Está escrito na minha cara que sou idiota?

Várias pessoas paravam e assistiam a cena. O velho Leonardo estava perturbado. O homem enraivecia-se cada vez mais. Mais curiosos paravam para ouvir e ver o desenrolar do falatório.

Você está fazendo todo mundo de bobo! É pra isso que veio à feira, não é? Fale alguma coisa! Não fique como uma pedra.

De fato, o velho Leonardo parecia uma pedra. Parara de trançar e olhava o chão. A pequena multidão de curiosos o deixava com medo. Há anos não se via no meio de tantas pessoas.

Vou falar com o diretor! insistia o homem, mais enfurecido.

Com lentidão e sacrifício, o velho Leonardo se pôs de pé. Afagou a cabeça da égua e, segurando a corda, preparou-se para partir. Estava aborrecido. As pessoas não o compreendiam. Perdera o interesse pela cidade e pelas pessoas. Elas não entendiam o que ele sentia.

Ei, tio, por que não responde?

Ele, então, parou, olhou firme para o estranho. Estava trêmulo. Todas aquelas pessoas o fitavam. Queria voltar para casa, meter-se naquele oco de serra e nunca mais falar com pessoas. Ele estava acostumado a conversar com sua égua. Ela o entendia, conhecia suas dificuldades. Mas os homens…

Eu não quero vender essa égua começou a explicar, as palavras trêmulas. Eu moro distante, muito longe, só tenho ela, não consigo vender por dinheiro algum… Estou velho e só. Ninguém quer um velho por perto.

Mas, se não quer vendê-la, por que a trouxe na feira? Está maluco? Pirou de vez!

Outros fizeram, em coro, a mesma pergunta. Riam.

Por que não tem um cachorro? É o melhor companheiro do homem.

Quem sabe, um papagaio? outros propuseram.

Ou uma cabra!

O velho Leonardo ouvia sem entender. Não queria um cachorro, muito menos papagaio. Cabra, para quê? Com sacrifício, começou a falar novamente:

O caso, seu moço, é que ela estava muito só, não tenho outros animais e, na vizinhança, também não. Ela estava triste, muito abatida. Ela só tem eu. Faz muito tempo que não venho na cidade. Fiquei cismando… cismando… Bem, se eu a trouxesse nessa feira ela poderia ver outros animais. Sabe, a solidão é uma doença muito ruim. Ela tem o direito de se distrair um pouco, não acha? O senhor já se sentiu só? Pois é. Então, é isso. A solidão rói, deixa a gente louco e mata. Eu só queria um pouco de alegria pra ela. Se vender essa égua, o que faço de minha vida? É como dar um tiro na testa, seu moço. Isso, eu não quero. Ela me ajuda a arar a terra, ela me ajuda a plantar, ela só falta falar! Ela sente o que as pessoas pensam. Sabe, os animais têm alma! Veja como está assustada só porque o senhor está brabo. Vejo que ficou muito brabo, mas me desculpe. Não aguento ver essa égua triste. Só quero ver ela alegre. Veja, agora ela está assustada! Bem, pessoal, nós vamos embora. Até outro dia. Deus dê boa vida a vocês, com muita saúde. Vamos cair na estrada. É tarde. Trecho longo.  Simbora, Bem-vinda!

Saiu puxando a égua pela corda. A pequena multidão de curiosos estava muda e cada um foi saindo de cabeça baixa.

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