Vim pegar minhas coisas (David)

VIM PEGAR MINHAS COISAS

David Gonçalves

 

Ninguém sabia por que ela não se casara. Três irmãos e cinco irmãs  se casaram. Menos ela, Olívia. Não era bonita, nem feia. Alguns pretendentes apareceram, mas não passaram por seu crivo. Quando os pais morreram, passou a morar só na vasta casa. Estava com 40 anos e perdera os arroubos da juventude. Mas era trabalhadora, econômica, nada desperdiçava. Os pais deixaram o pequeno lote de terra e, através do cultivo, ela vivia e conseguia progredir. O amor aos homens foi transferido aos cães e gatos. Vivia rodeada desses animais. A casa fedia. Os bichos de estimação circulavam livremente entre o excesso de mobília antiga, como donos.

– Por que não adota uma criança? – aconselhavam-na. – Há tantas almas pobres carecendo de abrigos…

Relutou. Estava bem sozinha. Mas o que fazer diante da realidade: não podia ter mais filhos e, a cada dia, desconfiava mais dos homens. Mas não era nada bom viver só com os cães e gatos, tratando-os como filhos.

Certa manhã fria, quando abria a porta, deparou-se com uma cesta. Dentro, um menino, enregelado, desprovido de cobertas. O Ocaso resolvera agir em seu proveito – pensou.

A vida floresceu, sorrindo-lhe prazerosamente. O rapaz cresceu coberto de mimos. Era belo, gostava de vadiagem. Olívia fazia vistas grossas, desdobrando-se para atender seus desejos. Ia mal na escola, rodeado de amizade ruim. Mas sabia engabelá-la.

– Por que não lhe dá uma enxada? – aconselhavam os vizinhos. – Tanta ociosidade não dá coisa boa.

Não deu mesmo. Aparecido, o Cidinho, fazia dançar o diabo em tacho quente. Olívia era chamada na escola, frequentemente. O fedelho metia-se quase todos os dias em encrencas.

Os irmãos vieram dar-lhe conselhos. O rapazote precisava de correções, não devia ser tratado como um príncipe. Ela os expulsou. Fossem meter o nariz em outra grota. Na casa dela, mandava ela. Os irmãos se afastaram, aborrecidos.

Quando fez 15 anos, o mundo revirou. O rapaz doce se transformou num fruto azedo. Revoltava-se, xingava-a, exigia dinheiro. Culpava-a por não conhecer os pais.

– O que eu fiz por você nenhum pai faria.

– Pouco estou me lixando – respondia, seco. – Estou vivendo como escravo. Por que me acolheu? Você não passa de uma bruxa!

Ofensas e mais ofensas. O que ela fizera para merecer tudo aquilo? Jogara pedras na Cruz? Encarnava-se no Mal? Quando, por prazer maléfico, matou com um pontapé o pequeno e velho cão cego, que há anos ela recolhera de uma valeta, todo emperebado e sarnento, Olívia suou frio, pressentindo o Belzebu.

– Por que fez isto? O que o cão te fez? Era teu amigo e gania de contente quando estava perto dele.

Deu de ombros, respondendo:

– Ele que se pôs diante de mim.

Argumento obtuso, cheio de teima. Olhar feroz, indiferente, danoso.  Olívia sentiu medo. Calada, pôs-se a carregar o cão morto, ainda quente, para o fundo do quintal. Chorava. Sim, ela havia jogado pedras na Cruz. O rapaz se revelava bruto, inumano, besta selvagem.

– Matarei todos esses gatos e cachorros imundos! – ouviu ele dizer, às costas, desafiando-a.

Desapareciam objetos de casa. A televisão? Sumira. O rádio? Também sumira. O crucifixo de metal dourado a ouro, herança dos pais? Sumira. Tudo que tinha algum valor desaparecia. Cidinho vendia para comprar drogas. De repente, a casa dela ficou espaçosa, com pouca mobília.

– Por que você está carregando minhas coisas? – repreendia-o.

– Preciso de dinheiro. Meus amigos vivem na bonança. Eu vivo mendigando.

Os irmãos vieram lhe dizer que o denunciasse. Olívia abrigava em seu teto um ladrão.

– Pelo menos ele me faz companhia. Vocês têm família. O que eu tenho? Alguém de vocês vai fazer companhia comigo?

Calaram-se. Então, eles se foram, aborrecidos. Ela não passava de uma mula teimosa. Na afeição cega pelo filho adotivo, misturava a mesma gratidão, a mesma humildade apaixonada dedicada ao próprio pai. Envelhecia rapidamente – perdia a visão, o olfato e a audição. Agarrava-se ao filho como um náufrago à palha.

Vivia da minguada aposentadoria. Assim mesmo, conseguia poupar. Comia cada vez menos, um tiquinho como passarinho. Então, o cartão do banco sumiu. O dinheiro também. Queixou-se ao gerente. Na filmagem do caixa eletrônico, lá estava o Cidinho sacando o dinheiro, boné tapando o rosto. Dar parte à polícia? Era seu filho amado.

– Por que não vende o lote de terras? – ele ansiava por dinheiro. – Não dá lucro, só trabalho. Eu não sou tatu pra cavoucar terra. O que você vai deixar quando morrer?

– Ingrato! Criei você e te dou de comer. O que espera mais?

– Então, por que estou aqui com uma velha bruxa suja, imunda, no meio de bosta de cães e gatos?

Uma punhalada que haveria de sangrar dentro de si para sempre. Chorava baixinho, quase inaudível, pelos cantos.

Varria o terreiro, quando os vizinhos lhe comunicaram:

– O teu filho está preso.

Não acreditava. Era um doce de criatura, uma criança ainda. Estavam enganados. O que acontecera?

– Ora, mãezinha, não invente manhas. Ladrão. Por um tempo, a polícia fez vista grossa. Mas, agora, além das drogas, distribui crack, maconha e pó branco. A Federal botou as garras nele.

– Ai, coitadinho. Isso é mentira. Sempre bom menino…

A pobre criatura lançava o avental engordurado sobre a face enrugada e pálida, e chorava.

– Eu endoido! – repetia, incrédula, obstinada na ideia de inocência.

Foi sentar-se no banco da varanda, ficou imóvel, fixando o caminho da propriedade, como há tempo fazia, sem orações e sem paz. Olhava o caminho como se esperasse alguém descer por ele.

A partir desse dia, sentava-se na pequena sala, no meio de gatos e cães, e perscrutava o vazio, esperando a volta do filho. Pronunciava seu nome repetidamente. As asas dos pombos batiam na vidraça da pequena janela com grade de ferro e enfurecia os cães. O pêndulo de cobre do relógio oscilava na caixa pintada de verniz escuro e sujo. Vozes se cruzavam ao longe, inaudíveis. Sentia-se rolar como pedra por uma ribanceira infinita, sempre com a sensação de fim irremediável e sempre mais próximo. O suor escorria pelo rosto, as mãos torciam-se. Deixava de ver e ouvir. Cães e gatos. Gatos e cães. Cabeça oca; não tinha pensamentos. Flutuavam-lhe formas vazias, às vezes doces, outras vezes azedas.

No meio da noite, escutou alguém tentando abrir a porta. Era o Cidinho. Estava apressado.

– Ah, Jesus! Meu bom filho voltou! Deus ouviu minhas preces!

– Vim pegar minhas coisas.

Ensacou a roupa, sapatos, chinelos – enfim, o que pode, e foi embora, perdido na noite. Dele, guardou a frase: “Eu não estive aqui.” Por mais que implorasse, de joelhos, lágrimas vertendo, ele a empurrou como objeto qualquer. No dia seguinte a polícia revistou a casa, a pequena propriedade. Tinha fugido da cadeia, junto com outros, numa rebelião.

Quatro semanas se passaram. Os vizinhos estranharam o silêncio da casa entrecortado de mios e uivos de gatos e cães. Avisaram os irmãos. Havia cheiro de carne podre.

– Olívia! Olívia! Abre a porta – batiam tão forte na porta que a arrombaram.

Estava morta, jogada no chão, apodrecendo, cheio de moscas varejeiras, a cabeça cortada.

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