Vindita do historiador

Trecho do romance do acadêmico, premiado pela Fundação Catarinense de Cultura – 2003

 

Cidade dos Príncipes… Cidade das Flores… Cidade das Bicicletas… Assim era conhecida a outrora pacata Joinville, de colonização alemã e suíça.

As bicicletas foram desaparecendo e a cidade se expandindo para o alto, em desenvolvimento planejado. Agora agitada, sem perder seu jeito humano de ser. Sua principal economia? A indústria.

Em busca da maturidade industrial, Joinville se transformara nas últimas décadas no mais dinâmico centro produtivo do Sul do País, no campo metalúrgico e têxtil, exportando tecnologia e qualidade para os quatro quadrantes do mundo.

De olho na competitividade e na maior rentabilidade, pequenas empresas acabavam por desaparecer, dando lugar aos grandes grupos estratégicos, inclusive internacionais. O Historiador costumava dizer em suas palestras:

“Ninguém pode evitar as mudanças e o processo evolutivo. No entanto, esquecer a história e ignorar o passado é estar despreparado para os conflitos que as mudanças, inevitavelmente, acabam gerando”.

Joinville estava de luto. A cidade industrial prestava a última homenagem ao seu ilustre filho Maximiliam Norden, conhecido como “Historiador”, sendo velado no grandioso Centreventos da Avenida Beira-Rio. Ali, onde ele havia sido presença marcante em tantos eventos culturais, como no anual e internacional Festival da Dança. Longas filas de pessoas amigas e curiosas eram direcionadas para o imponente pórtico em vermelho forte, com ilustrações monumentais do artista joinvilense Juarez Machado.

Longe dali, Samuel Moscavo olhava para a garrafa que tinha nas mãos, o vento forte a lhe desalinhar os cabelos escuros. O olhar triste passeava pelo rótulo da garrafa… Appelation Cotês-du-Rhône Controlée. Mis en bouteille en la maison.

– Um bom vinho, Sr. Norden – ele ia falando consigo mesmo. – Vin de table rouge. Vermelho como sangue! Por Deus, o senhor não devia ter sido tão descuidado.

No alto da colina, acima de sua casa de enxaimel, o Historiador queria passar o último dia de sua vida. Ele havia dito isso… E Samuel queria prestar a última homenagem a Maximiliam Norden naquele lugar. Não numa fila interminável no Centreventos, ou ao lado de sua sepultura.

Levou a mão ao bolso e pegou o canivete. Com a lâmina cortou a cabeceira do lacre. Recolheu a lâmina e preparou o saca-rolha, girando-o cuidadosamente até vê-lo sumir inteiramente na cortiça. Prendeu a garrafa entre os joelhos e fez espocar a rolha com o barulho característico de um bom vinho ao ser aberto. Tirou dois cálices do bolso do paletó e ajeitou-os como pôde sobre a pedra rústica onde estava sentado. Em seguida, encheu-os com o rouge.

– Vamos lá, Historiador! Um pouco para você… Um pouco para mim.

Tilintou os cálices e aproximou um deles ao nariz, fechando os olhos e sentindo o exalar da fragrância. Bebeu um grande gole e estalou os lábios.

– Ótimo vinho, Sr. Norden. Carnudo, excelente buquê, desce suave como néctar.

Tilintou uma vez mais os cálices e voltou a beber. Lembrava-se do que o Historiador lhe havia dito ao telefone: “Tenho novidades para você, Samuel”.

– Quais novidades, Sr.Norden? Que eu jamais saberei quem foi meu pai? Quais novidades?… Que continuarei sendo um bastardo? Um gitano?

Samuel Moscavo não podia imaginar que haveria de enfrentar o inferno de Dante ao se aproximar da bela Helène, neta de Klaus Dammgarten. No entanto, há mais de um ano, ele podia jurar que estava no caminho certo ao sentir que o todo-poderoso presidente da Fundição Dammgarten lhe prometia um futuro de glórias ao dizer:

“Gosto do seu estilo, Samuel! O mundo é dos perspicazes, dos audaciosos… E você sabe como somar talento e coragem. É o que precisamos na organização: talento e coragem! Vá em frente com suas ideias! Mude o que precisa ser mudado, principalmente a curva das vendas. Para o alto, Samuel! Sempre em ascensão”.

Samuel Moscavo parecia ainda escutar a voz firme e incentivadora de Klaus Dammgarten, acompanhada de tapas nas costas e da promessa de vê-lo subir na mesma linha ascendente das vendas. Dammgarten só não havia alertado quanto à linha divisória entre o permitido e o que lhe seria negado. Aproximar-se do “fruto proibido” tivera o sabor da desgraça e acabara por demonstrar que nem sempre perspicácia e audácia são boas companheiras… Ele estava agora no olho da rua.

Procurar Maximiliam Norden lhe pareceu, na ocasião, o único caminho viável para reconstruir um castelo desmoronado. Quem mais podia lhe dar esperanças de encontrar suas origens, senão seu velho amigo Historiador? Aquele homem alquebrado, cabelos alvos e finos como fios de algodão, era um legado de conhecimentos, profundo estudioso de fatos e personagens que haviam marcado e vivenciado cada momento importante na comunidade.

“Não deixe que a busca das origens interfira na sua valorização pessoal, Samuel. Você tem o direito da busca. Mas, acima de tudo, tem a obrigação de valorizar corpo e espírito. Um nome é apenas um nome. Mais importante do que o passado é o presente e os dias que virão. Vou tentar ajudar a descobrir quem foi seu pai, desde que me prometa não dar a esse fardo um peso maior do que possa carregar”.

A voz mansa e pausada de Maximiliam Norden parecia se misturar ao som do vento incessante. Samuel fechou os olhos.

“Quem me ajudará a carregar o fardo agora, Historiador?

Ele sabia que Maximiliam Norden havia se empenhado ao máximo. E parecia eufórico ao dizer: “Tenho novidades para você, Samuel”.

Samuel Moscavo estava atordoado. No momento em que tinha novidades para ele, o Historiador desaparecia misteriosamente. Uma fatalidade brutal, de inesperada coincidência. Ao invés da solução esperada, Maximiliam Norden lhe havia deixado uma charada.

– A propósito, Sr.Norden… O que queria dizer com… Imigrant Wittenberger?

Os goles de vinho continuaram.

– Está bem, está bem… Cabe a mim, descobrir. Podia ao menos dizer em qual navio o imigrante veio, não é mesmo, Sr. Norden?

A garrafa do rouge francês acabou chegando ao fim. O único e precioso líquido que ainda restara estava no cálice reservado ao Historiador, meio inclinado sobre a pedra rústica. Samuel levou a mão à cabeça. Sentia-se meio zonzo. Pela vez primeira ele havia tomado uma garrafa de vinho sozinho. Olhou para o cálice do Historiador e tentou alcançá-lo. A ponta do dedo roçou na borda do cálice e o vinho entornou, escorrendo pela pedra e sumindo terra adentro.

– Desculpe, Sr.Norden – balbuciou, língua meio presa.

Levou a mão à nuca e virou o rosto em direção ao mar. Seus olhos brilhantes pareciam ainda mais azuis.

– Santo Deus!…

Lá na baía, majestosamente ancorada, estava uma barca de três mastros com velas arriadas. Parecia muito antiga. Samuel levou novamente a mão à nuca e pensou:

“Deve ser efeito do vinho.”

Voltou a olhar para a baía… E a barca não estava mais lá. Sacudiu a cabeça. Olhou para o cálice e sorriu envergonhado. Voltou a olhar para o horizonte e não queria acreditar, mas podia jurar que a barca de três mastros e velas enfunadas ia ao longe.

– Boa-viagem, Sr. Norden – gritou, levantando-se tropegamente.

E pegando os dois cálices, espatifou-os contra a pedra.

________________________

 

Jurando jamais voltar a tomar uma garrafa de vinho sozinho, pelo menos não de estômago vazio, Samuel Moscavo colocou-se a caminho de volta pela estreita trilha particular deixada pelo Historiador. Em poucos minutos estava na clareira e olhava para o que havia sobrado da modesta, mas confortável casa de Maximiliam Norden.

A varanda de tábuas impregnadas de óleo queimado, de onde o Historiador costumava apreciar o sol sumir por detrás da Serra do Mar, ainda estava em pé. Samuel subiu os poucos degraus ainda intactos e caminhou até a porta. O incêndio havia destruído praticamente todo o resto.

Parte do assoalho salvo pelas águas dos bombeiros aguentou o peso de seu corpo por apenas alguns passos, ruindo de repente. Ele tentou se agarrar como pôde, mas já era tarde… Deslizou pelas tábuas inclinadas num barulho infernal, levantando uma lufada de pó das cinzas e foi parar no porão, com escoriações nos braços e nas pernas.

– Merda! – gritou, levantando-se e se contorcendo em dores.

Um raio de luz solar encontrou caminho pelo soalho quebrado e iluminou parcialmente o porão.

– Olá, Historiador! – Samuel gritou com a mão em concha junto à boca. Como vai querer que eu decifre essa charada com tudo isto destruído?

E olhou para cima. A escada de madeira que podia tirá-lo dali era apenas uma escultura de carvão. Ele teria de empilhar restos queimados do que fosse possível, para sair dali. Foi afastando e recolhendo pedaços de madeira, alguns tijolos e o que havia sobrado de uma velha barrica… Então, aconteceu:

A velha barrica estivera assentada sobre uma lajota de cimento recortada no piso. Esfregou o chão com o sapato para afastar alguns resíduos e deixou-se cair de joelhos. Havia uma alça metálica naquele quadrilátero de cimento… Um alçapão!

Já não se importava com as roupas emporcalhadas. Levou as mãos à alça metálica e tentou puxar a tampa de cimento para cima. O pouco que ela resistiu foi pela sujeira em sua volta. Logo estava aberta.

– Historiador, o que temos aqui? – exclamou, nervosamente.

Abençoou a falta de nuvens ao ver os raios solares iluminando os poucos degraus que desciam para o desconhecido. Um pequeno espaço com paredes de pedras, não mais que dez metros quadrados… O “porão do porão” pensou consigo.

Tirou a camisa e colocou-a aberta sobre os primeiros degraus. Os raios do sol bateram sobre ela, refletindo luz para dentro do pequeno ambiente. Iluminação suficiente para ver prateleiras carregadas de velhos livros e pastas de arquivos.

Coração acelerado, Samuel começou a descer cuidadosamente cada degrau como quem profana um mausoléu sagrado. Aproximando-se das prateleiras, suas mãos foram acariciando as lombadas dos livros como se estivessem acariciando o próprio corpo do Historiador.

– Sr. Norden…

Deu mais alguns passos ao longo das prateleiras e puxou um dos arquivos. Ao abri-lo sentiu o coração disparar, reconhecendo a letra do velho amigo. Abriu outra pasta e mais outra, não conseguindo reter as lágrimas…

– Sr. Norden… O senhor está vivo!

____________________

 

No cair da tarde, Samuel Moscavo escancarou a porta de vidro que dava para a sacada do seu apartamento no décimo andar e suspirou com vagar, esvaziando o ar dos pulmões. Estava exausto!

Deixou o olhar cair sobre o bulevar de palmeiras gigantes logo adiante e sorriu amargamente. Tinha sido ali, entre aquelas palmeiras, que ele tinha conversado pela primeira vez com Maximiliam Norden.

Lembrava-se bem daquele dia ensolarado em que o simpático Historiador era simplesmente Tio Max, rodeado de aproximadamente duas dúzias de crianças barulhentas enquanto ele tentava explicar como mais de cinquenta palmeiras haviam sido ali plantadas e por quê.

Partout le cocotier, mon arbre favori – ele ia dizendo às crianças, em caprichado francês. Foi assim que o príncipe exclamou ao chegar ao Brasil: “Por toda parte o coqueiro, minha árvore favorita”. E estas palmeiras foram plantadas em homenagem ao Príncipe de Joinville, desde a Rua do Príncipe até o palacete que hoje abriga o Museu de Imigração e Colonização.

E apontava para o prédio de sete arcos, no final do bulevar.

– Tio Max, é verdade que os príncipes nunca vieram morar naquele palacete? – uma das crianças perguntou.

Balançando a cabeça, o Historiador agachou-se para ficar da altura dos garotos e olhou docilmente por cima dos pequenos óculos ovais de aros metálicos.

– Naquela época, a cidade era uma colônia muito pequena, com apenas um punhadinho de gente – respondeu com um sorriso aberto, fazendo sobressair suas bochechas rosadas. O príncipe e a princesa Dona Francisca tinham problemas bem maiores para resolver em Paris, lá no velho mundo. O importante é que as palmeiras ficaram. E nasceram de sementes da palmeira-real, plantada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro pelo príncipe regente Dom João VI.

Assim era Maximiliam Norden… Importante para gente grande e para gente pequena. E ele costumava dizer: “A curiosidade natural das crianças é mais importante do que a busca egoística dos adultos”.

_______________________

 

Agora, Maximiliam Norden estava morto.

Os bombeiros haviam localizado duas grandes latas retorcidas, explodidas. E podiam garantir que se tratava de gasolina. Por que o Historiador guardaria dois latões com gasolina em sua casa, se não possuía automóvel ou qualquer tipo de motor que necessitasse daquele tipo de combustível? E por que a última palavra do Historiador tinha sido… Vindita?

Samuel Moscavo voltou-se para o interior do apartamento e, inquisitivamente, olhou para uma dezena de caixas de papelão sobre o tapete da sala. Enquanto o corpo de Maximiliam Norden era sepultado, ele havia transferido a “alma” do Historiador para o seu apartamento.

O que aqueles velhos livros e manuscritos podiam revelar? E o que encontraria naquelas caixas sobre o mencionado Imigrant Wittenberger?

Samuel Moscavo havia procurado seu velho amigo Maximiliam Norden na esperança de que o Historiador pudesse ajudá-lo a descobrir suas origens. Descobrir quem era o seu pai. Norden ainda não lograra êxito, mas tinha algo importante para lhe transmitir naquele fatídico domingo, pois parecia eufórico ao dizer:

“Tenho novidades para você, Samuel!”

 

O Historiador estava morto com fortes suspeitas de o incêndio ter sido criminoso. E os papéis passaram a se inverter… Agora, era Samuel Moscavo quem devia pesquisar. O Historiador lhe havia deixado uma missão: procurar o imigrante Wittenberger e… Vindita!

Eram muitos os livros, quase todos sobre cidades e regiões europeias. Maioria deles escrito em alemão. Falavam do povo, dos costumes e tradições teutônicas. Outros, igualmente antigos, discorriam sobre a Noruega, Dinamarca e Suíça.

Certamente, Maximiliam Norden havia passado horas intermináveis debruçado sobre aquelas páginas, em busca de respostas para seu incansável questionamento sobre aqueles imigrantes pioneiros que haviam iniciado uma colônia em terras inóspitas e com muita história para contar.

De onde vinha coragem de deixar a pátria-mãe, para cruzar perigosamente o oceano rumo ao desconhecido? Que motivos aquela brava gente tinha para dar costas ao passado em busca de um futuro incerto, imprevisível?

O Historiador havia pesquisado durante toda sua vida, procurando juntar fragmentos e reconstruir fatos que estariam para sempre sepultados, não fora a persistência e a inabalável crença de que aquela era a sua missão.

O que mais impressionou Samuel Moscavo foram os manuscritos amarelecidos, registros infindáveis de próprio punho, que o Historiador tão bem havia organizado em arquivos sequenciais. Ali estavam registrados os primeiros embarques de imigrantes pelo porto alemão de Hamburgo e as datas de chegada, desde março de 1851, quando a primeira barca havia ancorado próximo à terra prometida com cerca de cento e noventa pessoas a bordo, exaustas e nervosas… Mas cheias de esperança.

Depois da barca Colon, outras vieram carregadas de imigrantes, como as barcas Emma & Louise, Gloriosa e Neptun.

Maximiliam Norden tivera o cuidado de tudo registrar com a disciplina que lhe era peculiar. A relação dos imigrantes estava em ordem alfabética pelos sobrenomes, que ele tivera o cuidado de fazer num dossiê para cada família, como se a qualquer momento precisasse deles discorrer.

No primeiro arquivo, pastas começavam com a letra “A”. Lá estavam sobrenomes como Abich, Artmann, Albrecht… Na ordem, sobrenomes com a letra “B”, como Bauer, Boehm, Brüstlein… Seguindo o alfabeto, vinham outros sobrenomes como Colin. Dammgarten, Elling…

– Dammgarten?

Samuel Moscavo surpreendeu-se com a própria voz, carregada de fel. Não era de seu feitio alimentar o rancor. Tinha, no entanto, fortes motivos para sentir-se magoado ao se lembrar de Klaus Dammgarten. Dera duro nos cinco anos em que trabalhara na Fundição Dammgarten e sabia o quanto havia contribuído para fazer subir a curva das vendas da poderosa organização nos mercados interno e externo.

Os números testemunhavam. Os números não mentiam e aquele homem, que se considerava intocável, tinha a obrigação de reconhecer o esforço e a considerável dedicação de Samuel Moscavo, ao invés de puxar o tapete que lhe havia estendido.

 

Vindita significa Punição Legal

 

(Este livro de Wilson Gelbcke vale-se da ficção e da realidade histórica para contar uma trama que se passa em duas cidades: Joinville, no Brasil, e Hamburgo, na Alemanha. A narrativa transcorre em tempo presente, repleta de ação, romance e suspense, que são determinados pelos mistérios e acontecimentos do passado)

COMPARTILHE: