Virada de ano (David)

VIRADA DE ANO

David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras

– MAIS UM COPO, VOVÔ! Esta berita é das boas!
O velho dá uns passos bambos. Ri por qualquer coisa, os dentes falhos.
– Se quero! Arre, não é todo dia que se bebe assim. Eu mereço!
O genro – sorriso desnaturado entortando os lábios finos – abre a torneira do barrilzinho de carvalho e enche o copo de plástico:
“Aproveite, velho nojento!” O velho ri. Meio surdo, pensa que é elogio. Agarra o copo com as mãos trêmulas, a cabeça zonza, tudo parece flutuar.
– Deus do céu! Você fede! – tapa as narinas o genro. – Que destino, o meu!
Fim de ano, todo mundo em sua casa. Cunhados malditos comem como gafanhotos, bebem como camelos. Não aguenta o sogro. Muito menos a sogra. Que mulherzinha ordinária… Vive metendo o bico, mandos e desmandos. O que fazer? Os três netos adoram aqueles bodes velhos fedorentos.
– Mais um copo, vovô! Ah, ainda não terminou… Beba rápido. Aqui, mais um!
As passadas do velho tornaram-se plumas. As ideias ocas, o vozerio distante. Tenta levantar-se da cadeira de palha e cai feito uma fruta madura, quase rachando a cabeça na quina da porta. Todos acodem, rindo. Sem jeito, levanta-se, sem saber o que havia acontecido. O genro o abraça e oferta outro copo de cachaça.
Na cozinha, mãe e filha preparam a ceia de fim de ano. Quando saem à porta, o velho já se achava de pé com o copo nas mãos. A velha mira o genro, desconfiada. Não o tolera – insolente, zombeteiro, traiçoeiro, como urubu atrás de carniça. Que belo casamento a filha fizera… Nunca aceitara aquela união. Mas a filha era mãe solteira. A netinha fora criada com mimos pela avó, como se fosse filha. Mãe solteira não deve ficar escolhendo marido. Ainda bem que aparecera um com dinheiro. Pelo menos, não era pé rapado. O que fazer? Dinheiro manda, põe e dispõe. Que fossem felizes! Passar as festas naquela casa era um martírio…
Mais um tumulto lá fora. Novamente, o velho estava no chão e não conseguia erguer-se. O genro – cada vez mais sorridente – tentava erguê-lo como um saco de batatas.
– Este bode velho fede! Já está podre. Apodrece em vida. Que nojo!
– Pare de beber, Agenor! Nada mais de bebida! – ordenou rispidamente a velha. – Vocês querem deixar o velho arriado!
O genro observa com raiva os cunhados, três homens fortes e taludos, que já passam dos trinta anos e ainda vivem debaixo dos cuidados da mãe, como se fossem eternos meninos.
Da porta da cozinha, a filha grita: “Mãe, cuide dos assados. Vou dar banho na Geovaninha!” Lá está ela, novamente, na cozinha. Assados, sobremesas, saladas… O filho da mãe do genro estava dando um porre no Agenor. Dois netos vieram-lhe puxar a saia. “Chocolate, vovó, chocolate!” Que gracinhas! Eram lindos anjinhos… Quando ia dar-lhes os bombons, ouve os gritos agonizantes da Geovaninha no banheiro. Ah, meu Deus, o que está acontecendo?!” Sai correndo da cozinha, enrolada no avental. Depara a filha surrando a netinha.
– O que é isso, Maria? O que ela fez?!
– Faço, sim! É só manha! – e dá-lhe mais palmadas.
Desesperada, ela afasta a filha, protegendo a netinha. O genro está na porta, enfurecido, gritando:
– Larga a menina, velha imunda! Cachorro de dois donos acaba passando fome.
À força, toma-lhe a netinha dos braços e ordena:
– Dê-lhe mais palmadas, mulher! Mostre quem manda aqui. Essa manha tem que acabar!
A velha se enfurece e voa no pescoço do genro e ambos saem agarrados pela casa. Os parentes acodem, os netos olham espantados. Lá fora, o velho cai pela terceira vez e bate a cabeça no banco. O sangue jorra. Do forno, na cozinha, um cheiro de carne queimada paira sobre o propício ano que se aproxima. Alguns vizinhos começam a queima dos fogos.

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