? “Trem de ferro – conto” (Milton Maciel)

TREM DE FERRO – conto
MILTON MACIEL

Raios, maldito trem! – Martim acordou assustado, o quarto trepidava inteiro, o quadro na parede em frente batia nela, o ruído das rodas de ferro nos trilhos era ensurdecedor. Para piorar, veio o apito: longo, alto, lento, estridente.
Martim olhou o mostrador azul do rádio relógio digital: 23:30 exatos.
– Desgraçados! Não chega o barulhão todo, o terremoto de escala 7, e ainda têm que apitar? Apitar praticamente à meia-noite!
Sentou furioso na cama, o ruído do trem desfazia-se ao longe, para sua esquerda, o efeito Doppler no apito era perceptível.
Caramba, precisava dormir cedo, amanhã haveria outro ruído inconveniente; então ele olharia o mesmo mostrador azul e veria 5:00 da madrugada.
Tentou se acalmar. O mais importante era voltar a dormir. Depois reclamaria com a recepção do hotel. Ainda bem que havia mais lugares para se hospedar ali por perto. Por perto?! Seu idiota, o maldito trem vai perturbar do mesmo jeito. Preciso mudar pra outro bairro, vou perder a moleza de ir a pé pro trabalho. Mas é melhor assim do que chegar todo dia sonado como um zumbi. Con-seguiu pegar no sono rapidamente.
Na manhã seguinte saltou da cama às cinco, a tempo de abrir todos os manuais e reler as rotinas que teria que demonstrar conhecer dali a poucas horas. Engoliu o café às pressas e foi falar com o concièrge.
– Bom dia. Acho que vou deixar seu hotel ainda hoje. A noite aqui foi péssima, barulhenta.
– Perdão, senhor, mas o que foi que aconteceu? Nosso hotel é sempre tão silencioso e…
– Silencioso?! Com aquele trem desgraçado passando e apitando daquele jeito? Me acordando com seu ruído infernal?
O homem arregalou os olhos desmedidamente e olhou para Martim como se não estivesse acreditando no que ouvia:
– Mas senhor, essa linha férrea foi abandonada há mais de 20 anos, depois de um desastre horroroso, onde morreram dezenas de pessoas. Só existem alguns restos de trilhos em umas poucas ruas, como aqui na nossa. Há muitos anos que não passa trem algum por aqui. Com certeza o senhor deve ter sonhado.
Foi a vez de Martim arregalar os olhos. Sonhado? Não, não era possível, o quarto tinha tremido todo, o quadro batia tanto que parecia que ia despencar da parede. Será que o concièrge era tão desonesto que seria capaz de negar a existência daquele trem espalhafatoso só para não perder o hóspede?
O telefone tocou, o funcionário pediu licença para atender, Martim aproveitou e deixou-se cair numa poltrona. Depois, pensando melhor, voltou ao salão de café. Havia mais 6 madrugadores como ele fazendo a refeição. Estava perplexo demais, ansioso demais, para fazer rodeios. Falou com hóspedes em três mesas diferentes, perguntando-lhes sobre o trem dos infernos.
Ninguém tinha ouvido nada!
Uma funcionária entrou para repor bandejas com biscoitos. E ela confirmou o que o concièrge dissera: Não passava trem por ali há mais de 20 anos, depois de um desastre.
Martim lembrou-se que precisava chegar na empresa antes do engenheiro de manutenção. Subiu ao quarto, apanhou notebook e instrumentos e chamou ele mesmo um Uber. Passou pelo concièrge de cabeça baixa, o homem encarava-o com uma expressão estranha, sentiu-se corar intensamente.
Passou o dia ocupadíssimo, estava ali para ajustar, um por um, os braços robóticos da linha de montagem e o robô de pintura eletrostática, todos fornecidos por sua empresa de São Paulo. Um dia, evidentemente seria insuficiente para tudo isso. Ainda mais que, na parte da tarde, tinha que começar a dar treinamento para os engenheiros da cliente. Sabia que teria que ficar pelo menos umas duas semanas naquela cidade, até poder considerar sua missão cumprida.
Ele era engenheiro mecânico, com uma pós-graduação em microeletrônica e doutorado em robótica e mecatrônica. Valia muito bem cada dólar que a matriz da empresa nos EUA autorizara que lhe pagassem no Brasil.
Mas havia algo errado com ele. Aquele sonho horroroso do trem estava dizendo que algo estava desajustado dentro do seu cérebro; justo esse, que vivia de ajustar cérebros eletrônicos robóticos país afora. Talvez fosse estafa, precisava negociar uma folga. O Dr. Reinaldo entraria em pânico, como ficariam as instalações e treinamentos sem ele na ativa?
Chegou tarde no hotel, mais de 10 horas, teve que aceitar jantar com os diretores da empresa cliente. Estava exausto. E com o uísque escocês fazendo algum estrago, dando-lhe mais sono ainda. Resolveu deixar o banho para a manhã seguinte, a noite estava quente, jogou-se na cama de roupa, sapatos e tudo.

Às onze e trinta em ponto o trem passou!

Martim acordou sobressaltado, não havia trem nenhum há décadas, estava tendo alucinações, estava mal mesmo. Sentou na cama com a cabeça entre as mãos; maldito uísque, só podia ser ele, fazendo repetir o pesadelo do trem. O quarto começou a parar de tremer, o som Dopller do apito engrossou, a alucinação ia parar.

Mas foi aí que o quadro que trepidava caiu da parede. O vidro quebrou-se em estilhaços.

Martim começou a entrar em pânico. Pulou da cama, pegou o quadro, levou-o à luz da lâmpada de cabeceira. Era o retrato de uma mulher jovem incrivelmente bonita. Ficou magnetizado. Por um instante a visão daquele rosto o fez esquecer do problema da alucinação.
Sentou-se na cama de novo, com o quadro na mão e atinou: Espera aí, pesadelos não derrubam quadros! Será…
Nesse instante bateram na porta. Martim estava tão atoleimado que nem pensou em perguntar quem era àquela hora, praticamente meia-noite. Abriu a porta.

E era a moça do quadro!

Martim sentiu que tremia, não podia tirar os olhos dos olhos azuis da moça loira. Achou que ia desmaiar. Foi quando ela lhe falou:
– Por favor, por favor, nos ajude! Houve um desastre horrível com o trem aqui em frente. No meu vagão acho que estão todos mortos. Só eu escapei. Vim pedir ajuda.
Martim estava como que hipnotizado. Deu a mão à deusa loira e deixou-se levar por ela para a rua em frente. O desastre de fato era horrendo. Entrou no vagão. A moça abraçou-o. Ele retribuiu. Então o trem, inexplicavelmente, recompôs-se e andou. O apito soou alegre, cristalino.

Em vão a polícia procurou-o por meses. Nunca mais alguém ouviu falar do engenheiro Martim Otávio de Souza.

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