📓Outeiro das vértebras incandescentes (Joel)
Outeiro das vértebras incandescentes
Crônica de quinta, Joel Gehlen
Entre a colina e o mar, o outeiro das vértebras incandescentes impõe sua corcova de
crespa luminescência. Joinville tem ruas desastrosamente assimétricas, alguns cantos do mapa da cidade mais parecem a cabeça da Medusa, com suas linhas serpenteantes e
abruptas. É sempre incauto percorrê-las, mesmo quando te parecem familiares. De
repente, trancam sentidos, viram mão única, proíbem conversão à direita, terminam no
aclive de terra. Quando menos se vê, estamos onde não queríamos estar. Claro que a
zanga impacienta e forja um impropério na garganta. Diacho!
Então, é preciso proceder à fabricação da calma, sentir o seu efeito benfazejo crescente
sobre a respiração e o corpo. Sacar dos olhos e enxergar. Está lá, a face leste do monte
Boa Vista, uma longa franja de floresta rendada em verde, no instante em que a montanha
se ajoelha para a baía, onde nascem os sóis de cada dia. E longe do alcance da vista,
pode-se pressupor o mar que lateja e se estira, também genuflexo em cada onda que deita
à areia da praia. A brisa traz notícias de peixes em cochichos de salsugem. Vestígios
náufragos de algas e sal. Entre a colina e o mar se avulta o Cemitério São Sebastião do
Iririú. Tristonho, baldio, inóspito como sói apresentar-se um campo dos ausentes nos
intervalos sem enterramentos. Cobre-nos o tecido do silêncio, e os motores do mundo
estão desligados.
Por um instante, despeja a calma e a bem-aventurança dos Salmos sobre essa rua que
não sei o nome. Uma aragem densa corre seus dedos por entre as folhagens
sussurrantes, ouve-se o matraquear do labor nas garagens arrabaldinas. De todos os
contornos do universo, o Sol escolhe depositar seu beijo mais ameno sobre a vértebra
cemiterial. Esse sol de fim de inverno, que é todo ternura, cintila e flutua e nos traduz o
âmago do instante em que se despede. Não se trata apenas da paisagem desnudada e
sem os freios de nuvens, mas é o coração que se percebe desoprimido na obliteração das
amarguras. Enfim, livra-se dessas pequenas raivas do cotidiano que fazemos questão de
destilar, embora esfumem a razão, tolham a sensibilidade e soneguem o que há de mais
essencial em estar do lado certo das cercas dos cemitérios.